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1958: A grande Copa

Até hoje a cena é eletrizante, se revista no cinema ou na televisão. Pode-se chamar de “a caminhada do século” o trajeto de Didi levando a bola ao centro do campo

AP

O Brasil jogava a final da Copa do Mundo de 1958 contra a Suécia, país anfitrião, no dia 29 de junho, em pleno verão, mas debaixo de um frio de 10 graus. Aos 4 minutos do primeiro tempo o goleiro sueco Svensson alçou a bola para um zagueiro. Em poucos e precisos passes, sem que nenhum brasileiro tocasse na bola, ela chegou aos pés do atacante Liedholm. O sueco deixou o goleiro Gilmar estatelado: 1 x 0 para os donos da casa. A defesa brasileira congelou. Era a segunda vez que o Brasil disputava uma final de Copa. A primeira, em 1950, debaixo do calor do Rio de Janeiro, Maracanã lotado, fora uma catástrofe. O time da casa perdeu para os uruguaios precisando de um empate para ser campeão.

Naquela fria tarde de verão no estádio Raasunda, em Estocolmo, voltava o fantasma da catástrofe. Mas o que se viu então foi solene, majestoso. Didi – conhecido como “o príncipe etíope”, ou “o rei de ébano”, que o cronista Nelson Rodrigues dizia correr em campo com um manto nas costas, caminhou sem pressa até o fundo do gol e apanhou a bola. Calmamente, dirigiu-se ao meio do campo para reiniciar a partida. Os suecos ainda comemoravam, e foram silenciando. Didi dizia aos companheiros que o Botafogo tinha goleado o time sueco que era base da seleção. No meio do campo, teria decretado: “Vamos acabar com esses gringos”. E acabaram, numa exibição que consagrou a equipe de 1958 como a melhor que o Brasil já teve, ainda que seja difícil comparar, porque o estilo do futebol mudou muito.

A seleção brasileira fora para a Europa desacreditada. Depois da Copa de 50 houve a decisão de trocar a camiseta e o calção dos jogadores. O Brasil jogava de branco. Em 50 mesmo se esboçou uma camisa amarela. A troca só se concretizou de fato em 1954, quando o jornal carioca Correio da Manhã lançou um concurso. Só havia uma condição: no uniforme deveriam estar as quatro cores da bandeira nacional. Venceu o escritor gaúcho Aldyr Schlee, de Jaguarão, cidade fronteiriça com o Uruguai, que tinha a fama de torcer… pelos dois países!

Mas em 1954 a nova camisa afundou num dos grandes fiascos da seleção brasileira. Na Alemanha, o Brasil foi desclassificado depois de uma vitória, um empate e uma derrota por 4 x 2 para os maravilhosos húngaros. Estes, os favoritos, terminariam derrotados na final pelos alemães, num jogo em que saíram vencendo por 2 x 0 e perderam por 3 x 2. Para completar, o Brasil se classificara em 1958 depois de um empate sofrido com o Peru, em Lima, em 1 x 1, gol de Índio (centroavante do Flamengo), e uma vitória medíocre contra o mesmo time por 1 x 0, no Maracanã, gol de Didi, de falta.

O Brasil estreou em 8 de junho, em Gotemburgo, contra a Áustria, derrotando-a por 3 x 0, dois gols de Mazzola e um golaço de Nilton Santos, médio-esquerdo. Depois o Brasil pegou a Inglaterra, dramático 0 x 0, num jogo em que o goleiro McDonald defendeu tudo e o Brasil quase perdeu. Consta que após esse jogo teria havido uma reunião de alguns jogadores com o técnico Vicente Feola. Contra o time da rainha, Dida, machucado, cedera lugar a Vavá. Segundo algumas versões, jogadores teriam “exigido” a saída de alguns e a entrada de outros. Outras versões dizem que eles teriam “pedido”. E há ainda quem negue tudo, inclusive a reunião. O fato é que contra a União Soviética, a seguir, o Brasil jogou mais ofensivo, mais brilhante, mais tudo. Garrincha entrou no lugar de Joel e logo de começo driblou meio mundo e acertou uma bola na trave.

O goleiro soviético era o melhor do mundo, o legendário Yashin, o Aranha Negra, que jogava de uniforme preto e boné. Não adiantou: foram dois gols de Vavá, Brasil
2 x 0. Começou a se construir a equipe que seria consagrada na final contra os suecos: Gilmar; Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Vavá, Pelé e Zagalo. Uma coisa ficou patente: a seleção da estréia tinha um perfil, digamos, sem querer ofender ninguém, muito europeu. A seleção final era muito mais morena, “abrasileirada”, cafuza, de cores muito mais confusas, misturadas. E alegres. Um caso paradoxal foi o de Djalma Santos e De Sordi: este jogou todas as partidas, menos a final. Djalma só jogou a final. E quem é lembrado é ele, e não De Sordi, que aliás foi indicado para a seleção do mundo pelos jornalistas.

Depois da União Soviética (que disputava uma Copa pela primeira vez), o Brasil jogou contra País de Gales, uma equipe aguerrida, mas de pouca técnica, classificada num jogo de repescagem contra Israel. (Em 1958, pela primeira vez seleções asiáticas e africanas disputaram uma vaga.)

O resultado foi se fecharem numa defesa inexpugnável até os 26 minutos do segundo tempo, quando Pelé, numa jogada maravilhosa, enfiou a bola nas redes. Depois o Brasil pegou a França, uma das favoritas, que trazia dois monstros sagrados: Just Fontaine, maior goleador da história das Copas, com 13 gols em seis jogos, e Kopa, que teria Didi pela frente. Arrasou: 5 x 2. A partir do segundo tempo a França jogou com 10, pois um de seus volantes se machucou e não se permitiam substituições. Nesse jogo houve várias consagrações. A primeira foi a jogada clássica com que o Brasil abria o placar: Didi servia Garrincha, que passava pelo marcador como chuva por peneira, ia à linha de fundo e centrava para Vavá emplacar.

O sambinha

Tão famosa foi a jogada que Pelé foi o goleador do Brasil, com seis gols, mas Vavá levou a fama. Num dos sambas sobre a conquista, dizia Túlio Piva na estrofe final: “Zagalo tabelava com Pelé/ Didi, rei com a bola no pé/ Garrincha, tico-tico no fubá/ E a torcida gritava: gol de Vavá!” Outra jogada consagrada na partida contra a França foi a folha-seca, a bola em curva inventada por Didi, e que só ele sabia dar. No meio do segundo tempo Didi varou a folha-seca da intermediária: o goleiro francês, Abbes, saiu correndo, foi até fora do gol, depois quis voltar, mas não deu: a bola entrou no ângulo e ele ficou caído.

Na final, o Brasil teve de trocar de camisa. Jogou de azul, porque os suecos tinham a camisa amarela também e ganharam o sorteio do troca-não-troca. A seleção campeã, por descuido, consagrou a prática de cada jogador ter um número independentemente da posição no campo. O motivo é hilário: na lista que enviara à Fifa, a então CBD esquecera de indicar a numeração das camisas. O funcionário da Fifa que recebeu a lista pôs os números que bem entendeu. Gilmar, goleiro, era o 22; Garrincha, ponta-direita, 11; Didi, meia-armador, 6; e Pelé, reserva, era o 10. O menino de então 17 anos e alguns meses se adonou do número.

Depois do gol-fantasma de Liedholm e da “caminhada do século” de Didi, o Brasil desembestou e impôs novo 5 x 2, gols de Vavá (2), Pelé (2) e Zagalo. Dois gestos encantaram o mundo: os brasileiros deram a volta olímpica com a bandeira da Suécia; e, a pedido dos jornalistas, o capitão Bellini ergueu a taça para ser fotografada. A partir daí o gesto, que não existia antes, ficou consagrado e repetido por todos os vencedores.

Os 22 jogadores que compunham o escrete de 1958 eram os goleiros Gilmar (Corinthians) e Castilho (Fluminense); os defensores Bellini (Vasco), De Sordi (São Paulo), Djalma Santos (Portuguesa-SP), Mauro (São Paulo), Nilton Santos (Botafogo), Oreco (Corinthians), Orlando (Vasco) e Zózimo (Bangu); os meias Dino Sani (São Paulo), Didi (Botafogo), Moacir (Flamengo), Zito (Santos); e os atacantes Dida (Flamengo), Garrincha (Botafogo), Joel (Flamengo), Mazzola (Palmeiras), Pelé (Santos), Pepe (Santos), Vavá (Vasco) e Zagalo (Flamengo).

O time da estréia: Gilmar, Bellini e Orlando; De Sordi, Dino e Nilton Santos; Joel, Didi, Mazzola, Dida e Zagalo. A forma como era apresentada a escalação ainda lembrava a antiga tática pirâmide, com dois zagueiros (ou “beques”, de back), três médios (dois halfs e o center-half) e os cinco atacantes. Mas no mundo todo já se praticava o esquema WM, em que na zaga aparecia mais um jogador pelo meio (o futuro “zagueiro-central”). No meio-campo, dois médios recuados e dois avançados, o “quadrado-mágico”, protegiam a defesa e serviam o ataque, formado por dois pontas e o centro-avante (center-forward). O 4-2-4, com dois defensores de área e dois laterais; dois médios (os futuros “volantes”); mais dois pontas, meia-armador e centro-avante, introduzido pelos húngaros em 1954, foi o seguido pelos brasileiros em 1958. O time do jogo final (o da foto de abertura) foi o que acabou consagrado.

O rei e o povo

Na seleção do mundo eleita pelos jornalistas, o Brasil tinha oito jogadores: Gilmar, Bellini, De Sordi, Nilton Santos, Didi, Pelé, Vavá e Garrincha. Os outros eram o zagueiro Szimaniak, da Alemanha, o meia Voinov, da União Soviética, e o atacante Skoglund, da Suécia. E Didi foi eleito o melhor da Copa, sendo que aí, pela primeira vez, foi usada a alcunha que depois consagraria Pelé: o “príncipe etíope” virou “rei”, como no samba de Túlio Piva.

O povo deste lado do mundo ouvia tudo pelo rádio. Havia tevê em poucas cidades do Brasil, e apenas de alcance local. O jeito era grudar no rádio ou ir para a rua e ouvir pelos alto-falantes na frente dos jornais e estações de rádio, onde multidões se aglomeravam, vibravam, roíam as unhas ou choravam. Ou amaldiçoavam em coro, como nos estádios. Um mês depois, a filmagem dos jogos passava nos cinemas, nos cinejornais que antecediam os filmes. Tinha gente que ia ver cinco ou seis vezes o mesmo filme só para ver de novo o jogo.

Eram tempos eufóricos. Depois da conturbada morte de Getúlio Vargas, o Brasil tinha um presidente bossa-nova: Juscelino Kubitscheck, de nome complicado e sorriso aberto. Pela primeira vez um presidente virou uma sigla: JK. “Cinqüenta anos em cinco” era seu mote. O Brasil se industrializava a galope. O fogão a gás, o chuveiro elétrico, o Bombril, o detergente, a caneta esferográfica, o automóvel nacional mudavam a paisagem brasileira. Ah, sim, havia também Brasília e alguns arquitetos de gênio, como Oscar Niemeyer. Fundavam-se a bossa nova, o novo teatro, o cinema nacional avançava e ganhava prêmios. Havia até quem sonhasse com o socialismo.

O povo imperava nas ruas. E imperou, para receber sua corte e seus reis sobre os caminhões de bombeiro em quase todas as capitais brasileiras. Para quem viu e ouviu, foi de encher a alma. Éramos felizes e mal nos dávamos conta.