entrevista

Tecendo a vida adoidada

Para a psicanalista Maria Rita Kehl, a forma como a sociedade lida com o tempo só faz bem para a indústria de antidepressivos

Jailton Garcia

Maria Rita Kehl é polivalente. Aos 56 anos, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, atende em seu consultório desde 1981. Antes, já freqüentava o mundo da literatura com o livro de poesias Imprevisão do Tempo (1979), experiência que repetiria com O Amor é uma Droga Pesada (1983) e Processos Primários (1996). E, além de se dedicar intensamente ao complexo universo dos indivíduos, costuma passear os olhos clínicos pelo mundo e transformar em ensaios questões coletivas da humanidade (leia em www.mariaritakehl.psc.br). Há cerca de um ano tenta terminar um novo livro, sobre depressão. Para tanto, utiliza as poucas horas vagas, e às vezes ainda tem de ceder um pedacinho delas para entrevistas como esta, feita em “prestações”, nos dias 22 e 26 de abril. Talvez seja também ela uma vítima desse tempo, que segundo Antonio Candido, antes de ser apropriado pelo ritmo alucinante do capitalismo, deveria ser tratado como o tecido da vida. Mesmo pressionada pelo relógio, ela conversou com desenvoltura com a Revista do Brasil sobre processos de comunicação, política, família, juventude, amor. Pena que o tempo acabou.

Em casos como o da menina Isabella, é o interesse do público por tragédias que move a mídia ou o exagero na cobertura que move o público?
As pessoas se interessam pela tragédia há 3.000 anos. Esse assassinato, em particular, inquieta e satisfaz as pessoas. Quase todo mundo conhece o sentimento de irritação extrema, de não conseguir lidar com as emoções. Então, a primeira reação é de prejulgar, é de fúria, é “eu jamais faria isso”, “eu não conheço esse sentimento”, “eu sou completamente diferente”… O que não é verdade. No inconsciente, a gente reprime sentimentos parecidos. Outra coisa é a possibilidade de haver um sentimento contra a figura da madrasta. Ser mãe biológica não é garantia de bons sentimentos, mas colocamos a mãe sempre num altar e usamos a madrasta para representar o lado escuro da mãe, desde os contos de fadas. E tem, ainda, um pouco da idéia de que família boa é aquela que tem o pai e a mãe biológicos e os filhos. Casou de novo, “olha aí, está vendo…” E como a gente está numa sociedade muito carente de valores públicos, em que pouco se faz em nome do bem comum, a família está muito idealizada. Um crime dentro de uma família, ou a suspeita de, deixa as pessoas indignadas e, como tudo o que nos enfurece, também excitadas e curiosas.Mas por que não quiseram influir nos outros casos? Por que contra as outras atrocidades e impunidades o povo não se mobiliza com tanta energia? As pessoas não se mobilizam contra crime que envolve criança pobre. Antes daquela brutalidade com o menino João Hélio, no Rio (em fevereiro de 2007, que gerou muitos protestos, comoção social), havia acontecido a chacina em Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense (em março de 2005), em que policiais abateram 29 pessoas na rua, incluindo crianças e adolescentes. Não houve grandes protestos.

E a exploração pela mídia também teve dimensões diferentes.
É evidente que os temas de grande interesse popular são sempre os mesmos, erotismo ou pornografia, crime, violência, acidentes, porque são os grandes temas do inconsciente. Por que quando há um atropelamento a maioria das pessoas pára para olhar? É porque a morte nos fascina. A morte, a violência fascinam, como todos os temas ligados àquilo que é mais reprimido na gente. Mas não há espaço de destaque para o assassinato de criança negra e pobre.

É por isso que o público aceita, por exemplo, que o autor da novela da noite leve o grande vilão, um crápula que roubou tudo da mãe de seu filho, a se redimir, quem sabe até ficar com a moça?
Isso tem a ver com essa tese de que os valores sentimentais é que contam. Impressiona muito nas novelas que seja raro o bandido ser punido na forma da lei. No final, ou morre num desastre, ou alguém o mata – é a vida que castiga. É raro uma novela terminar com o bandido preso e julgado. No Brasil, no nosso imaginário, primeiro a gente ouve muito que “Deus vai castigar”. E há essa pressa em perdoar. Basta ver o modo como terminou a ditadura: terminou, terminou, não se fala mais nisso. Não houve pressão para punir os ditadores. Agora acontecem algumas indenizações, mas não houve julgamento. Todo mundo foi perdoado e nem sequer pediu perdão. Nem se dá nome aos responsáveis. O brasileiro tem horror ao enfrentamento do conflito.

Isso é sintoma de depressão? Ou apenas omissão?
Isso produz depressão. Nós ficamos, digamos, fatalistas, “deixa Deus resolver nossos problemas”. É um pouco conseqüência daquilo que o Sergio Buarque detectou também no que chamou de homem cordial. E também não é omissão, tem a ver com o coração. É a idéia de que valores da vida privada é que regem a vida pública, os valores do sentimentalismo ou mesmo a cordialidade que faz com que o povo comum diga “ah, vamos perdoar ele, não vamos mais nos ocupar disso, vamos curtir a vida, bola pra frente”. Cordialidade é isso, os valores do coração. Os sentimentos regem a vida pública. O que pode dar em linchamento também.

Você acha que a competitividade nas várias circunstâncias da vida esteja levando a algo epidêmico?
Não seria epidêmico, mas trato a depressão como um sintoma social, e o principal fator contemporâneo que produz o aumento da depressão é o aumento da velocidade com que a gente vive nosso tempo. Eu mesma estou aqui contando os minutos (daqui a pouco tenho de atender). É como se a gente tivesse uma urgência temporal que faz com que a vida perca completamente o valor. O tempo da experiência, da reflexão, todo o tempo da chamada vida subjetiva está sendo atropelado pelo tempo do capitalismo. Esse é o primeiro fator da depressão, essa desvalorização do tempo como tempo de vida. Como diz o professor Antonio Candido: “O capitalismo se considera o senhor do tempo. Essa idéia do ‘tempo é dinheiro’ que rege a nossa vida é uma brutalidade. O tempo é o tecido da nossa vida”. Então, se você negocia a matéria-prima da sua vida, valendo dinheiro, a vida se desvaloriza. Se a vida se desvaloriza, para que viver? A depressão tem um pouco a ver com isso.

Para se adequar às exigências.
Vivemos numa sociedade do capitalismo avançado, de consumo, toda voltada para a felicidade, para o gozo, para festas. Então, por que há estatísticas sérias da Organização Mundial da Saúde dizendo que a depressão está aumentando e pode vir a ser, daqui a dez anos, a segunda principal causa não de morte diretamente, mas de morbidade?

Em tese, existem melhores condições de vida hoje do que antigamente.
Aparentemente. Mas temos notado uma coisa muito importante. A indústria farmacêutica vem sofisticando, desde os anos 70, as pesquisas de antidepressivos. Existe uma oferta grande de medicamentos e ao mesmo tempo uma divulgação não do remédio, mas da depressão. Você vai a um consultório, a um posto de saúde, e vê na sala de espera uns folhetinhos bem-intencionados perguntando “você tem isso, isso, e isso?” Aí tem uma lista de sintomas que qualquer um em algum momento difícil da vida já sentiu: falta de sono, perda de apetite, desânimo, falta de ar, angústia…

Como alguns horóscopos: qualquer situação se encaixa em qualquer dia para qualquer signo…
Exatamente. Então, tem uma procura enorme por antidepressivos. Li numa reportagem do Valor Econômico que a venda de antidepressivos no Brasil cresce algo próximo a 22% ao ano e movimenta US$ 320 milhões. É muita grana. As pessoas começam a tomar antidepressivo porque estão numa sociedade que não tolera a tristeza, o abatimento, ou que você não esteja sempre apto a achar que a vida é maravilhosa.

Mas precisam recorrer a médicos para usar?
Mesmo que seja um picareta, mas sem receita você não compra. Há médicos convencidos de que você tem de tratar aquilo que a gente chama de “dor de viver” – que é vital no ser humano – com antidepressivo. Até amigos dizem “ah, você tem de tomar um antidepressivo, você está muito caído”. A ideologia é esta: não tente curar suas dores pela reflexão, não dê o tempo que o luto precisa, tome um remédio e toque em frente. O trabalho é cada vez mais competitivo, quanto mais depressa o cara estiver bombando de novo, melhor. E não tem a ver só com trabalho, mas com os imperativos do consumo. É isso que impede que as pessoas tenham o tempo que precisam para se recuperar das quedas, perdas, crises. Tenho observado e conversado com psicanalistas, e há um aumento alarmante de suicídios entre adolescentes, pelo menos de classe média. Alarmante! Não sei se isso significa que os adolescentes estão passando por crises mais graves do que as crises de adolescência de 20 ou 30 anos atrás. A adolescência dos anos 60, 70 tinha um prestígio. O adolescente em crise juntava os amigos para falar, tinha uma certa rede de solidariedade e de interesse, a crise significava que você estava amadurecendo.

Não estou enaltecendo um clube da fossa, como a gente brincava. Mas o adolescente não se sentia um subumano por estar em crise. Hoje não há espaço, amigos e adultos não querem saber. Os adultos vão correndo levar o filho para o psiquiatra porque não sabem como acompanhá-lo solidariamente. Os pais se sentem culpados: “O que eu fiz de errado? Meu filho não está enturmado, não está indo trabalhar, não está indo para a balada”. Quando ele vai para a balada todo sábado, os pais se preocupam porque ele corre outros riscos. Mas quando ele se recolhe no quarto os pais acham intolerável. Tenho um colega que é orientador num colégio de classe alta. Ele me contou que de 40 e poucos adolescentes, meninos e meninas, que naquele ano tinham passado por perdas graves na vida, apenas um diz que conversou com um amigo. Os outros diziam: “Imagina, ninguém quer saber…” O ambiente solidário que permitia contar com os companheiros vai se substituindo por um ambiente de competitividade. Quem fica ou transa mais, quem vai para mais balada, quem é o mais popular. Então, o adolescente que passa por uma crise se recolhe. E ao sofrimento com a própria crise se acrescenta outro – na adolescência muito grave – , que é se sentir por baixo, errado.

E medicação, nesse caso, não quer dizer remédio.
A depressão é um sentimento de empobrecimento da vida subjetiva. Eu não estou falando contra medicação. Mas medicação como panacéia, que dispensa o trabalho de terapia, de a pessoa tentar elaborar o que está acontecendo, acaba favorecendo esse empobrecimento da vida psíquica. O sujeito automatiza alguns comportamentos, consegue estar mais ativo, regular o sono, comer, ir para o trabalho, mas não sabe por que depois de alguns anos continua deprimido. Como diz uma paciente após muito tempo de medicação: “Sou um fantasma que anda; faço tudo, mas não sinto nada. Então, prefiro me arriscar a sentir a tristeza que sentia antes mas falar dela, a ficar nesse automatismo”. É importante redescobrir até o valor da sua tristeza. A tristeza exige um tempo psíquico diferente do tempo do capitalismo. Mesmo o lazer, principalmente entre jovens, está muito dominado pela velocidade, por performance. Tempo é dinheiro, não perca tempo, manda ver. Essa modulação de ritmo, que permite que você tenha em contraposição ao ritmo acelerado do trabalho um tempo do lazer ou do ócio, vai se perdendo. E o que a gente tem como ócio hoje em dia? Deitar no sofá em frente à TV. As pessoas falam: “Ali eu me desligo”. Mas uma parte está ligada, senão você não ficaria vendo televisão; ficaria ouvindo música ou em silêncio, pensando. A televisão reproduz essa velocidade.

E nesta sociedade acelerada o amor também estaria mais veloz? Casais se separam mais rapidamente, aumenta o número de casamentos. Esse fenômeno não leva a um novo perfil da família?
Eu não gostaria de abordar as transformações do amor fazendo uma defesa da antiga família patriarcal, monogâmica, fechada sobre si mesma etc. Freud começa a observar o sofrimento das mulheres histéricas, dos neuróticos, dos filhos incestuosos grudados na saia da mãe no apogeu dessa família perfeitinha, desse casamento-para-sempre que é a família moderna burguesa. Isso vem do século 19 até metade do 20. É uma família construída para manter uma tal estabilidade e uma tal garantia de que os filhos vão herdar não só o patrimônio, os padrões de comportamento. Essa idéia dos pais dentro de casa, a mãe dentro de casa, dedicada aos filhos, é um celeiro de neuroses.

O que vem substituindo essa família?
Aí tem uma contradição interessante. Por um lado, com os valores da vida pública tão esfacelados, o amor virou o grande valor da vida individual. A gente o idealiza. Esse casamento burguês (em termos de conduta, não de classe) antigo não é necessariamente por amor. Tem a ver não raras vezes com conveniência. Claro que podia haver amores e paixões, mas o casamento se mantinha muito além da duração do amor, porque era a regra. Mesmo depois do divórcio já legalizado, a lei moral era manter esse casamento até a morte. Hoje essa lei moral não existe e o casamento passa a ser mais baseado no amor e paixão. O que por um lado é muito interessante porque as pessoas buscam os parceiros que realizam suas fantasias amorosas, o seu erotismo, as mulheres têm liberdade sexual, elas podem escolher, “com esse não deu, vou com aquele”. Tem um lado mais legal principalmente para as mulheres. Acabou a esposa que casa virgem com o único homem da sua vida e passa a vida inteira sem conhecer a felicidade sexual. Às vezes o homem achava que estava autorizado a procurar outras, ela não.

Agora, o amor virou uma espécie de mercadoria também. Sexo e amor já estão tão associados ao discurso das mercadorias que viraram uma espécie de valor agregado delas. As pessoas têm uma pressa muito grande de encontrar um grande amor, têm uma pressa muito grande de definir essas relações eróticas do começo da vida. Há uma liberdade sexual muito maior, os jovens já podem morar juntos, ou levar a namorada para a casa dos pais, as parcerias sexuais se intensificam muito rapidamente. E ao mesmo tempo somos uma sociedade tão voltada para o prazer imediato que o amor resiste pouco às suas crises, que são próprias do amor, as decepções, a pessoa não estar o tempo todo naquele estado de apaixonamento.

As pessoas não têm paciência para cuidar?
Menos paciência. Fazer renúncias (a outras formas de prazer) em nome de quê? E tem um apego muito grande. Se a vida pública, social não favorece, se você pertence só à sua familinha, ao seu parceiro, você se apega muito rapidamente, espera muito do outro, sobrecarrega o balaio do amor. Todas as situações da vida têm de ser compensadas por uma felicidade amorosa, digamos, para usar uma linguagem banal, seis dias de semana de trabalho cansativo, avassalador, exaustivo, para um sábado à noite no motel. Aí não resiste. Fica pesado para o amor. Aí as pessoas têm a ilusão de que se resolverá trocando de parceiro – e às vezes precisa trocar mesmo, há desentendimentos importantes, por isso que não faço a defesa do antigo casamento. Mas também há uma certa impaciência, principalmente entre os jovens, de “ah, não está mais rolando”. Passou a fulaninha, com sorriso mais legal, então vai rolar com ela… (pausa, olha para a parede) Pronto, já estou aqui de novo, na frente do meu relógio!

Colaborou Xandra Stefanel