Crônica

A primeira pedra

mendonça Delegacia do Carandiru, 18 de abril, 11h30 A multidão atira objetos e grita: “Assassinos! Assassinos! Assassinos!” – Pronto, entraram. Acertou? – Não. Errei por pouco. E você? – Acertei […]

mendonça

Delegacia do Carandiru, 18 de abril, 11h30

A multidão atira objetos e grita: “Assassinos! Assassinos! Assassinos!”

– Pronto, entraram. Acertou?

– Não. Errei por pouco. E você?

– Acertei no escudo da polícia.

– Legal!

– Será que demoram muito para sair?

– Depende. Eu me lembro que, no primeiro depoimento, o jornalista que matou a namorada saiu logo.

– Foi, sim. Mas ele era réu confesso. É bem diferente.

– É, eu sei. Mas a moça que armou com o namorado e o cunhado para matar os próprios pais também não demorou muito.

– Ah, então é de lá que eu te conheço! Bem que eu sabia que você não me era estranho!

– Também estava te achando familiar. Mas eu pensava que era da Escola de Base.

– Não, cara! Não deu pra fugir do trabalho naquele dia.

– Pô, ruim, hein? Perdeu.

– Mas desta vez descolei um atestado médico falso.

– Boa!

Luzes se acendem e nova gritaria: “Justiça! Justiça! Justiça!”

– Ué, já estão saindo?

– Não. É que a TV está transmitindo. Olha a luz acesa lá.

– Opa! Se estão gravando, vamos gritar. Justiça! Justiça! Jus…

– Desligaram. Só estavam testando.

– Sujeitos de sorte, esses repórteres. Pegam sempre os melhores lugares.

– Pois é. Deixa eu ver seu cartaz? “Cadeia neles!” Legal. Olha o meu.

– “Filma eu, Galvão”

– Não! Do outro lado. É que aproveitei a cartolina.

– “Fora, monstros!” Beleza!

Delegacia do Carandiru, dia 18, 14h

– Você já foi ver o edifício London?

– Não.

– Meu cunhado está com uma van saindo da estação do Tucuruvi para lá.

– É?

– É. Ida e volta, dois paus. Tá ganhando a maior nota.

– Grande sacada!

Delegacia do Carandiru, dia 19, 2 da manhã

– Você viu na TV o… (bocejo) Pessoal da perícia com a boneca no gramado?

– Umas 25 vezes.

– E o buraco na tela?

– Umas 30.

– Coisa horrível, né? Meu filho nem tem dormido direito, coitado.

– Nem o meu.

– O pessoal da televisão devia respeitar as crianças.

– É. Um absurdo o que eles mostram.

– Um absurdo!

– Eu até vi quando interromperam um programa infantil para transmitir daqui, ao vivo.

– Falando nisso, será que filmaram a gente?

– Sei lá. Mas por via das dúvidas deixei o videocassete programado para gravar o Jornal Nacional.

– Gênio!

Delegacia do Carandiru, dia 19, 4h

– Já foi quase todo mundo embora.

– Tem mais um cara chegando ali.

– Sujeito estranho.

– Com aquele cabelo e aquela roupa, deve ser hippie.

– Xi, está vindo pra cá.

– Vai ver quer guardar lugar pra amanhã.

– Boa noite, gente boa. Quer uma pedra?

– Pedra? Em verdade eu vos digo: quem de vós estiver sem pecado que atire a primeira pedra.

– “Vós”? Eu hein, sujeito esquisito.

– Em verdade eu vos digo…

– Shhh, peraí, tem gente saindo.

– Vai, manda ver!

– Assassinos! Assassinos! Assassinos!

– Foram embora. Acertou?

– Não.

– Nem eu. Droga!

– O sujeito desconcentrou a gente.

– Aparece cada maluco por aqui…