Pasquale

O flúor que contém na água

Nos cardápios de nossos restaurantes, é comum uma observação: “Todos os pratos acompanham arroz, salada e pão”. Releia e veja se nota algo “estranho”

Mendonça

Vamos pensar um pouco nessa construção. Quem acompanha quem? Qual é o papel do arroz, da salada e do pão na composição do prato? O arroz, a salada e o pão são acessórios, acompanhantes do elemento principal da iguaria. Um filé, ao que quer que seja (ao molho madeira, à moda da casa etc.), é a vedete do prato. Como se vê, não são os pratos que acompanham o arroz, a salada e o pão; o arroz, a salada e o pão é que acompanham os “astros” principais de todos os pratos dos cardápios desses restaurantes. Essa idéia seria expressa com mais clareza por algo como “Todos os pratos são acompanhados de arroz, salada e pão”, ou “Arroz, salada e pão acompanham todos os pratos”.

Ao que parece, na frase dos cardápios houve cruzamento de construções, fenômeno mais comum do que se imagina. Com “Esse piso escorrega muito”, por exemplo, quer-se dizer que se escorrega facilmente no piso em questão. Diz-se, então, que “esse piso escorrega”, construção que resulta da redução de “nesse piso se escorrega”. Outro caso comum é o de frases como “Esse carro vende muito bem”, com a qual se quer dizer que o carro é bem vendido, é fácil vendê-lo.

No caso do último exemplo, de estrutura ativa, ocorre passividade, já que o sujeito (“esse carro”) não é o executor do processo expresso pelo verbo “vender”; é o alvo, o paciente desse processo. No exemplo do piso, o cruzamento é outro: transforma-se em sujeito (o piso) o que, na construção originária, seria adjunto adverbial de lugar. Tradução: o piso não é propriamente quem escorrega, mas o lugar em que se escorrega.

Nos postos de gasolina, é comum uma frase semelhante a esta: “Abasteça 20 litros e ganhe uma ducha”. O que se abastece? O carro, é claro, “Abasteça seu carro com 20 litros”. Ou seja, transformou-se em complemento do verbo “abastecer” a expressão que indica a medida, o número de litros com que se abastece o carro.

As obras de análise desse tipo de fato lingüístico (os dicionários de regência, por exemplo) demonstram que processos como os relatados neste texto fazem parte da “evolução” da regência verbal. No entanto, caro leitor, a questão não é tão simples como talvez se desejasse. Não basta uma ou outra ocorrência de determinada construção para que se possa dizer que ela é aceita com tranqüilidade na língua padrão. O caso de “Este livro vende muito bem”, por exemplo, já é mais do que consagrado na linguagem coloquial e na literária, mas é citado com restrição por um ou outro autor.

O Aurélio diz que o uso de “vender” com o sentido de “ser vendável” ou “ter boa venda” constitui brasileirismo, ou seja, é típico do português do Brasil. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, desmente o Aurélio, já que registra o sentido, mas não afirma que é típico do Brasil. Diz, no entanto, que é da linguagem familiar, ou seja, não é da língua culta ou formal. O Houaiss e o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Luft, registram esse uso de “vender”, sem restrição alguma.

Em relação aos casos de “Esse piso escorrega muito” e “Abasteça 20 litros”, a história é diferente. A primeira construção não é citada por nenhum dos dicionários brasileiros importantes, mas aparece no da Academia de Lisboa. A segunda, por enquanto, parece limitada a um caso muito específico, o da linguagem “petrolífera”.

Para encerrar, outro cruzamento interessante. Uma repórter falava das cáries em crianças. Lá pelas tantas, disse isto: “O flúor que contém na água tratada…” Quem contém o quê? Como é a água que contém o flúor, parece que teria sido melhor dizer “o flúor que a água tratada contém”. A repórter certamente cruzou essa construção com algo como “O flúor que está (ou ‘há’, ‘existe’) na água tratada”. Como sempre, é bom frisar que, em se tratando de fala, a análise deve ser diferente da que se faz quando se trata de texto escrito.

Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura