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Gostinho de antigamente

Mais nostálgico que se deleitar com os cannoli do seu Antônio, no estádio da Rua Javari, na Mooca paulistana, é saboreá-los num Juventus x Portuguesa em plena tarde de quarta-feira

Otavio Valle

Quando não são a paixão primeira dos fanáticos por futebol, Juventus e Portuguesa são, possivelmente, o segundo time do coração de todo torcedor de São Paulo. Em disputas entre os dois, os corações mais nostálgicos balançam, e o jeito é torcer por um bom jogo – e que vença o melhor. Se o jogo é na casa do Juventus, no bairro paulistano da Mooca – como aconteceu este ano no campeonato paulista –, corações e estômagos têm ainda de encontrar espaço para outra paixão antiga: os cannoli do seu Antônio Pereira Garcia. Aos 57 anos, ele sabe que em dia de “clássico” tem de estar em forma. Quando os times correrem para os vestiários, a torcida vai correr em direção aos seus doces, de origem italiana, como a vizinhança.

Há 30 anos seu Antônio não falta a uma peleja no tradicional estádio da Rua Javari. Anda com dificuldade com seu tabuleiro cheio de cannoli pendurado no ombro por uma alça de pano. Em plena quarta-feira, o jogo é às 4 da tarde – aliás, todo jogo na Rua Javari tem de ser à luz do dia, pois não há iluminação artificial. A partida é disputada. Superior, o time da casa faz dois gols, com Lima e Marcus Vinícius; a Lusa, que tem a reestréia de seu antigo lateral Zé Maria – já não tão jovem quanto há uma década, quando foi revelado pelo clube do Canindé –, desconta com o veterano Christian.

Apita o árbitro, e seu Antônio vai para o seu show do intervalo. A disputa para conseguir um canudo é divertida. Os torcedores se amontoam. O creme de laranja que recheia a massa fina frita, tipo folhada, chega a espirrar nas mãos mais afoitas. Em meio à confusão, seu Antônio mantém o sorriso no rosto enquanto, habilidoso, recebe o dinheiro, devolve o troco, envolve o doce em guardanapos e o entrega ao freguês, que vai erguê-lo como um troféu, e talvez já o tenha devorado quando se sentar de novo no seu degrau na arquibancada.

Na Rua Javari, os cannoli são famosos como a retranca com que o Moleque Travesso parava os “grandes” nos anos 1960, 1970, para, não raras vezes, dar o bote e surpreendê-los. Antônio Garcia começou a vender o doce aos 10 anos na feira da Mooca. Caiu nas graças dos italianos donos da receita e descobriu seus segredos. Hoje não se encontram cannoli em outro lugar, garantem os fregueses mais antigos. O recheio, “secreto”, é um pouco diferente do tradicional siciliano, que leva ricota. A versão brasileira parece uma mistura de gordura hidrogenada com essência da fruta cítrica. Seu Antônio não perde a ginga e dribla fácil o assédio dos curiosos em desvendar sua receita.

Neto de imigrantes, Antônio nasceu no Brás e sempre morou naquele bairro, entre a região central e a zona leste da cidade. É casado com Maria Garcia, há 31 anos, tem cinco filhos e oito netos. Evangélico, afirma que deve à fé tudo o que conquistou na vida. “Minha felicidade é fazer os outros felizes”, diz, franco. Quem pede cinco “pra viagem”, ao abrir o pacotinho em casa pode encontrar seis ou sete canudos. “Tudo tem de sair no mesmo dia, senão fica murcho.”

Segundo tempo

Para os torcedores do Juventus, o vendedor é parte do espetáculo. Ali há três tipos de torcedor, ensina o estudante Aurélio Teixeira, de 22 anos: “O que mora na Mooca, torce para o Juventus e come cannoli; o que come cannoli, mora na Mooca e torce pro Juventus; e o que torce para o Juventus, come cannoli e mora na Mooca”.

Apesar de a torcida adversária não ter acesso ao setor do estádio onde fica seu Antônio, o massagista da Portuguesa escapou durante o jogo para matar a saudade: “Provei cannoli pela primeira vez em 1985. Não esqueci mais o gosto”, revelou Albertino do Nascimento Silva, chamado de Edu Bala por sua semelhança com o ponta palmeirense das décadas de 1960 e 1970. Aos 55 anos, este Edu Bala revive a juventude ao lado do massagista do Juventus, Elias Pássaro, de 78, que também traçou um canudo. Ambos trabalharam juntos há cerca de 20 anos. Sabendo que hoje seu compromisso profissional está em outros campos, Edu Bala confessa: “Trabalho à parte, o coração fica dividido entre os dois times”.

Quando o jogo caminha para seu crepúsculo, como diria o locutor Fiori Gigliotti, o astro Allan Delon marca mais um para o Moleque e, antes de o juiz encerrar a partida, a Lusa volta a diminuir e ensaia uma pressão. Fecham-se as cortinas, e o jogo, com emoção de clássico, fica nos 3 a 2 para o time da casa. Fora das quatro linhas, o grande destaque, seu Antônio, continuava confirmando a sua liderança no coração dos torcedores do bairro. O Juventus não joga todo dia ali, mas a peleja de seu Antônio vai de domingo a domingo – afinal, o doce é a principal fonte de renda da família, e o tabuleiro tem de circular. Longe da Rua Javari, seus cannoli poderão ser sempre encontrados em alguma “ponta de feira” dos arredores da Mooca.

La dolce mafia
Os cannoli, plural de cannolo (canudo), não são estrela exclusiva da Mooca. Já apareceram no roteiro de O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola e Mario Puzo. No primeiro filme, de 1972, o gângster Pete Clemenza (Richard Castellano), braço direito da família de Don Vito Corleone (Marlon Brando), diz ao comparsa que acabou de eliminar um rival: “Leave the gun. Take the cannoli” (“Deixe o revólver. Pegue os cannoli”). Os doces estavam no banco de trás do carro em que deixam a vítima. No último filme da trilogia, de 1990, Connie Corleone (Talia Shire), irmã de Michael (Al Pacino), presenteia outro rival com cannoli envenenados. Durante a apresentação da ópera Cavalleria Rusticana, os inimigos desviam o binóculo do palco e o focalizam nas mordidas fatais de Don Altobello (Eli Wallach).