JustiçA

Dez anos sem solução

Em 1998, milhares de pílulas anticoncepcionais Microvlar feitas de farinha e talco chegaram às farmácias. O laboratório só falou sobre o erro depois de meses. Centenas de mulheres buscaram a Justiça, mas os processos se arrastam

Rodrigo Queiroz

A suposta falta de provas desestimulou Luciana a acionar judicialmente o laboratório. Assim que soube da decisão do STJ, manifestou em artigo na internet, dez ano depois, sua revolta

Quando seu período de experiência terminava e estava prestes a ser contratada como copeira numa indústria, Maria Lúcia do Nascimento foi surpreendida por um teste positivo de gravidez. “Como é possível? Me perguntei. Tomava pílula desde que tive a minha primeira filha.” A resposta veio em junho daquele 1998. O laboratório assumiu publicamente ter despejado no mercado cartelas de comprimidos compostos de amido de milho e talco, em vez de hormônios contraceptivos. Maria Lúcia, hoje com 48 anos, diz que evitava uma nova gravidez por já ter filhos com 14 e 10 anos, o marido estava prestes a se aposentar e sua rotina diária incluía serviços de limpeza e copa numa empresa pela manhã e de faxineira diarista à tarde. Moravam nos fundos da casa da sogra porque não podiam alugar uma casa.

Problemas durante a gestação a levaram a afastar-se do trabalho e a situação financeira piorou. Na época, procurou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e seu nome foi incluído em uma ação movida contra a empresa por danos morais e materiais causados a usuárias da pílula Microvlar. Graças a uma liminar concedida poucos dias antes de a filha nascer, recebeu da companhia R$ 6.000 – comprou enxoval, pagou despesas médicas, a cesariana e uma cirurgia de esterilização. Enquanto o processo se arrasta, sua filha deve receber uma pensão mensal de três salários mínimos até completar 18 anos.Como Maria Lúcia, outros milhares de mulheres brasileiras podem ter engravidado naquela época.

No começo de 1998, para testar uma nova máquina embaladora, a Schering do Brasil Química e Farmacêutica produziu 25 milhões de drágeas de placebo. E quase metade delas, em 600 mil cartelas, acabou embalada e distribuída no mercado, segundo dados do Idec. Em junho daquele ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária proibiu a venda do Microvlar, liberada dois meses depois. Na época, era o anticoncepcional mais vendido no país. Consumidoras que já o usavam por mais de dez anos seguidos não notaram nenhuma diferença. Até que começaram a surgir os primeiros sintomas de gravidez.

A advogada Mariana Alves, do Idec, considera impossível saber quantas mulheres engravidaram por tomar pílula sem princípio ativo. “Sabemos que muitas procuraram o fabricante e fizeram acordos irrisórios”, diz. Em novembro de 1998, o Idec entrou com quatro processos em benefício de dez mulheres. Até agora, duas ganharam a ação por danos morais e materiais. O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a empresa a pagar indenizações que totalizam R$ 100 mil.

Uma dessas mulheres, depois de assimilar a idéia de uma gestação inesperada, teve problemas na gestação e foi submetida a um aborto. Conseguiu provar o que dizia mostrando a embalagem do produto com o lote fabricado com farinha. A outra tinha como prova o tíquete da farmácia. Ambas ganharam, mas não levaram. A Schering recorreu e não se sabe quando o processo chegará ao fim. O que todas conseguiram, via Idec, foi uma liminar que obrigou o laboratório a pagar valores entre R$ 6.000 e R$ 8.000 para custear despesas iniciais. Em três ações a Justiça determinou pagamento de pensão alimentícia mensal de um a três salários mínimos até o julgamento dos processos por danos morais.

A filha de Silvana Dangel recebe 2,5 salários desde os 2 anos. “Como eles depositavam em juízo, o dinheiro nem sempre chegava a tempo”, conta a mãe. Silvana, de 44 anos, tomava Microvlar desde os 18. Mãe de um menino com 8 anos na época, ela evitava uma segunda gravidez devido a complicações na primeira, quando o filho se desenvolveu na trompa esquerda. Tempos depois, foi submetida a uma cirurgia para retirada da trompa e do ovário esquerdos. A cicatriz deixada no útero era grande fator de risco de aborto. “Quando eu soube que estava grávida, tive uma crise, fiquei transtornada. Passou de tudo pela minha cabeça e levei meses para me acostumar com a idéia”, conta. Com 35 anos na época e uma gravidez inesperada e arriscada, a representante comercial precisou parar de trabalhar.

Além da queda no orçamento, teve de administrar o impacto emocional. O filho evitava a mãe a todo custo. “Foram meses sem que ele chegasse perto de mim.” Silvana foi ao Idec e reuniu fichas médicas, já que não tinha cartelas guardadas. A ação na qual está incluída já foi julgada e perdida em primeira instância. Embora o Idec não concorde, Silvana desconfia que faltou lisura ao julgamento. “A juíza e a advogada do laboratório eram colegas de faculdade”, afirma. “Quando minha filha tinha 3 anos, eu e outras mães tivemos de passar por uma perícia. A consulta atrasou mais de duas horas e, quando o médico abriu a porta do consultório, saíram advogados de lá de dentro. Não tenho dúvidas de que eram da Schering. Da perícia até a entrega do laudo passaram-se mais de seis meses”, relata Silvana.

Em julho de 1998, o Procon de São Paulo ingressou com ação coletiva por danos morais. Só no final de novembro passado o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a responsabilidade do laboratório por ter colocado no mercado as pílulas de farinha – que deveriam ter sido incineradas – e o condenou a indenizar em R$ 1 milhão as consumidoras que engravidaram. Patrícia Caldeira, assessora técnica do Procon paulista, explica que esse valor não será pago a cada mulher, e sim dividido entre aquelas que, ao longo do prazo a ser estipulado pela Justiça, conseguirem provar que faziam uso do produto e engravidaram mesmo assim. Segundo ela, ainda não foi publicada a abrangência da determinação judicial, ou seja, se vale só no estado ou para todo o Brasil.

Se, ao final do julgamento dos recursos da empresa, a determinação do STJ for mantida, poderá beneficiar mulheres como a jornalista Luciana Chagas, do Rio de Janeiro. Luciana tinha 19 anos quando se viu grávida mesmo tomando a pílula por mais de um ano; vivia um momento emocionalmente frágil e de insegurança por perdas familiares. “Questionei com a minha médica, mas, como nenhuma pílula é 100% segura, achei que não havia nada a fazer”, conta. Dois meses depois, quando o escândalo estava nos jornais, as cartelas e caixas tinham ido pro lixo. A suposta falta de provas a desestimulou a acionar judicialmente o laboratório. Depois que soube da decisão do STJ, publicou um artigo na internet. Foi a primeira vez, em dez anos, que expôs publicamente sua revolta.

O outro lado
O laboratório Schering informou, por meio da assessoria de imprensa, que no primeiro semestre de 1998 utilizou placebo em testes de um novo equipamento de embalagem. As unidades desse material foram identificadas e encaminhadas para incineração. De acordo com a companhia, algumas dessas unidades teriam sido furtadas e, no momento em que o fato foi detectado, foi comunicado a autoridades, consumidores, classe médica, distribuidores e farmácias.

A empresa assinala que investigações feitas demonstraram que o produto não destinado ao consumo jamais teria sido comercializado. Na ocasião, o estado de São Paulo e o Procon entraram com Ação Civil Pública requerendo a indenização para mulheres que teriam engravidado com o consumo do produto-teste. O processo encontra-se no aguardo de decisão ao recurso apresentado pela empresa.

A Schering informa ainda que a pílula Microvlar é “produzida sob os mais rigorosos controles de qualidade e fabricação determinados pelo laboratório em todo o mundo, continua sendo um dos contraceptivos orais mais vendidos no Brasil, utilizada todo mês por mais de 1,5 milhão de mulheres, o que demonstra a confiança depositada tanto pela classe médica quanto pelas consumidoras”. Das ações encerradas, o laboratório perdeu apenas 25%. Correm ainda na Justiça quase 300 processos. Em aproximadamente 90 deles, a Schering já entrou com recurso.