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De mestre para discípulo

Artes sofisticadas como o tai chi chuan expressam 5.000 anos de histórias de lutas mortais em busca do progresso e da preservação do conhecimento. E estarão na festa olímpica de Pequim

A Olimpíada de Pequim, em agosto, deve reacender o interesse pela cultura tradicional chinesa e suas manifestações mais peculiares. O tai chi chuan, por exemplo, será esporte de demonstração durante os Jogos. Trata-se de uma embalagem moderna para um conhecimento ancestral com longa história para contar que, muito mais do que um esporte, é arte marcial, prática meditativa, sistema de saúde e filosófico com vertentes religiosas. Tai chi chuan é a somatória disso tudo num estilo de vida disseminado no Oriente e adotado por um número crescente de ocidentais. Remonta ao princípio de todas as artes marciais chinesas, cujas primeiras notícias estão em pinturas datadas de 2100 a.C.

Os registros indicam sociedade agrária que se fixava e se inspirava em elementos da natureza, como os movimentos de animais (águia, tigre, garça, macaco e até mesmo dragão) e o entendimento dos princípios de interação entre os elementos naturais (ar, água, fogo, madeira e metal), tudo para o desenvolvimento de exercícios que resultassem em força de combate físico. No século 5, Bodhidharma, o 28° patriarca do budismo, era mestre em vajramushti (antiqüíssima e sofisticada arte marcial hindu). O monge peregrinou pela China quando o budismo ainda se arraigava por lá e, ao ver uma população doente e fraca, fixou-se no templo Shaolin até aprimorar a concentração e o autocontrole dos discípulos durante práticas meditativas dinâmicas. Eram exercícios corporais e espirituais de estímulo à saúde física e mental dos praticantes. Bodhidharma ensinou aos chineses o domínio do chi, a energia vital de todos os seres, de acordo com o budismo dhyanna.

Com a destruição do templo Shaolin, no século 6, a história documentada se perdeu. A difusão dos ensinamentos antigos passou a depender da transmissão oral, o que dificultava distinguir o que era mito do que era verdade. Sabe-se que desde esse período o domínio da filosofia e da prática das artes marciais criou uma classe com forte influência social e política, territórios livres, inclusive, do jugo dos imperadores. Assim, desde o início desse sincretismo entre o taoísmo chinês e o budismo hindu e tibetano, muitas histórias lendárias e outras tantas oficiais envolveram o desenvolvimento das artes marciais chinesas que se derivaram em uma miríade de estilos: os chamados internos, mais voltados às bases tradicionais taoístas, como o tai chi chuan, e os ditos externos, mais inclinados às influências budistas, como o kung fu de Shaolin.

Princípio sem começo

Paulo Pepeangela
Angela, que foi discípula direta do mestre Yang em sua casa, na China, treina com o marido Roque: "Tenho de espalhar os benefícios do tai chi chuan por onde eu puder"

Conta-se, lendariamente, que no século 13 um monge taoísta de nome Chang San Feng, versado em diversas artes marciais, pretendeu reunificar os princípios filosóficos e físicos que estavam se perdendo em virtude de constantes guerras no império. Decidido a fazer essa “enciclopédia”, associou-se aos templos da Montanha Wudang, onde, observando a luta entre uma grou e uma serpente, teria idealizado os movimentos do tai chi chuan. Um outra versão, esta documentada, descreve sua origem no seio da família Chen, com o mestre Chen Wanting, no século 17. Nos séculos seguintes, mais quatro estilos reconhecidos como tradicionais derivaram-se dele: o yang, o wu/hao, o wu e o sun.

O século 20, no entanto, foi definitivo para o atual estágio das artes marciais chinesas, hoje padronizadas em um sistema nacional que se presta a exibições e competições. A modalidade olímpica do tai chi chuan proposta pelo Comitê Nacional de Esportes da China funde elementos de todos os estilos. Essa sistematização, combatida pelos mestres dos cinco estilos por trazer uma simplificação da arte, é resultado de um processo histórico desencadeado na Guerra dos Boxers (1899 a 1901), passando depois por duas guerras mundiais, pela divisão do território chinês em três regiões – uma dominada pelos comunistas, outra pelos nacionalistas e outra pelos japoneses – e, finalmente, pela Revolução Cultural de Mao Tsé-tung, que, a partir de 1966, baniu as artes marciais e as considerou comportamentos “burgueses” e “reacionários”.

O conhecimento tradicional sofreu duros golpes, alguns letais. Muitos mestres e discípulos morreram sob perseguições nesses períodos, muitos estilos se perderam. “Nossa família manteve vivo o conhecimento nesses períodos, que foi tolerado por oferecer aplicações ricas à saúde pública, numa perspectiva que enfocava mais os aspectos terapêuticos do tai chi chuan”, contou o jovem Yang Jung, mestre da sexta geração da família Yang, responsável por manter vivos os segredos do sistema do clã. Ele deixou a casa de seus ancestrais e é o primeiro de sua linhagem a morar fora da China. “Hoje não somos perseguidos. Meu avô Yang Zhenduo vive na China, onde recebe discípulos do mundo todo. É considerado uma das jóias vivas da cultura chinesa. Eu saí de lá, pois, pela lei, só poderia ter um único filho. Isso talvez não assegurasse a continuidade da família e do conhecimento a ela confiado”, confidenciou o jovem mestre.

O boxe das sombras

A resistência a sistemas opressores está, aliás, na origem do próprio estilo Yang. Na virada do século 18 para o 19, o mestre Yang Lu-chang, ex-discípulo da família Chen, foi chamado a trabalhar no Serviço Real pelos “bárbaros e invasores” manchurianos. “Não querendo ensinar a arte para os manchus, o mestre Yang modificou as formas de meditação, ignorando a filosofia interna e a disciplina mental que são a chave do tai chi”, conta Waysun Liao, autor do livro Os Clássicos do Tai Chi. A forma ensinada por Yang Lu-chang tornou-se o tai chi chuan e disseminou-se por toda a China, onde hoje é praticada publicamente, e fora dela. “É a dança tai chi, também chamada de balé chinês por alguns ocidentais”, relata Waysun Liao.

Além da forma tradicional do estilo Yang, com 108 posturas, ou da forma curta, com 49, há o tue shou, que traduz do tal “balé chinês”, uma técnica refinada e preciosa de defesa pessoal. Há ainda o estudo de técnicas de manuseio de armas como espada e sabre. Todos esses conhecimentos mantiveram-se preservados, geração após geração.

Assim, o tai chi chuan, também chamado de boxe da sombra, deve ser estudado dentro da tradição. O professor Roque Enrique Severino, fundador da Sociedade Brasileira de Tai Chi Chuan e Cultura Oriental (SBTCC) e um dos principais responsáveis pela difusão dessa arte no Brasil, alerta os discípulos em busca de um instrutor: “É preciso saber quem foi o mestre de seu instrutor, e saber quem foi o mestre do mestre do seu instrutor”. Para Roque, a fonte do conhecimento revela a pureza com que ele chega ao aprendiz.

Maria Angela Soci Severino, diretora da SBTCC, a exemplo do professor Roque, seu mestre e depois marido, esteve na China duas vezes. Foi hospedada por Yang Zhenduo, grão-mestre da geração atual. Aprendeu em aulas particulares nos jardins da casa a forma tradicional do estilo Yang, que há 20 anos treina a forma curta, específica para campeonatos, e a forma de tai chi de espada (67 movimentos). Animado com a discípula, mestre Yang determinou que ela voltasse para o Brasil com a tarefa de disseminar conhecimento pela América Latina. “Ser discípula direta de um mestre, em sua casa tradicional, foi um privilégio que só farei por merecer se conseguir o que o mestre Yang Zhenduo me pediu: espalhar os benefícios do tai chi chuan por onde eu puder.” A missão vai sendo cumprida. O Brasil é o único país do mundo a proporcionar um curso de pós-graduação em tai chi chuan.

Valéria Sanchez, professora do estilo tradicional da família Yang, diz que a descoberta do tai chi foi mágica em sua vida. “Eu era secretária trilíngüe de diretoria de multinacional e me sentia oprimida pela grosseria dos executivos. Desenvolvi um hipertireoidismo que exigiria tratamento até o fim da vida, meu casamento estava terminando, não queria desistir da profissão… Mas não deu”, lembra. “No dia do meu aniversário de 29 anos resolvi ir fazer uma aula de shiatsu. Antes, acabei assistindo a uma professora dar aula de tai chi e me vi naquilo. Não fiz a aula de shiatsu. Seis meses depois, já estava fazendo curso de instrutora de tai chi. Passados dois anos, já estava na China, na equipe brasileira do 2° Campeonato Internacional de Estilo Yang.” A ex-secretária nunca mais teve problemas com a tireóide e hoje é uma instrutora realizada, com pós-graduação em Fisiologia do Exercício e a agenda tomada por aulas em empresas, escolas, centros culturais, hospitais, condomínios e praças de São Paulo.

Profundamente ligado aos conhecimentos do I Ching, O Livro das Mutações, e aos princípios duais do yin e do yang, o tai chi busca traduzir aparentes contradições e equilibrar opostos. “Além de possuir muitas e profundas camadas, o tecido de que é feito o tai chi tramou seus fios de modo a aprisionar a mente no silêncio, o movimento na quietude, a ansiedade na lentidão, a dureza no vazio. Praticar tai chi chuan é cuidar do corpo, da mente, do espírito e do universo”, diz o professor Roque. “O conhecimento de todas essas coisas, e de seus opostos também, circula livre no universo e manifesta-se na natureza, mas algumas pessoas se encarregam de disponibilizá-las organizadamente para nós”, completou, referindo-se ao mestre Yang Jun.

Quem está no começo da estrada parece já intuir esse caminho. “Há algo de misterioso no tai chi chuan. É fascinante, por mais que repita à exaustão aquelas posturas todas, sempre me fica a sensação de estar descobrindo coisas novas a cada vez que as repito e, mais uma vez, colho os resultados”, relata Luiz Carvalho, aluno da professora Valéria. “Mas sinto também, a cada vez, um estranho vazio indicando que o mais importante ainda está para ser descoberto.”