Crônica

Nirvana

As ruas vazias, o país em recesso, o mundo nas praias, os semáforos foram desligados por total inutilidade. Sim, havia na cidade um estado de felicidade

mendonça

Barata olhou para o relógio: 8 horas. Levantou-se da cama num pulo e começou a escovar os dentes ao mesmo tempo em que vestia a gravata. Estava amarrando o sapato quando sua mulher falou:

– Aonde você vai, Barata?

– Trabalhar.

– Está maluco?

– Maluco não, atrasado.

– Mas hoje é o seu primeiro dia de férias!

Ponto para ela. Nosso herói voltou para a cama. Mas não conseguiu dormir. Levantou-se de novo, abriu a porta do apartamento e apanhou o jornal deixado pelo porteiro. Ele estava fininho, com mais anúncios do que reportagens, como costumam ficar os jornais nas férias. Então Barata resolveu fazer algo que não fazia há muito tempo: uma caminhada. Calçou os tênis, vestiu trajes esportivos que cheiravam a mofo e saiu.

Logo de cara, teve um choque: pôde atravessar a rua. Num dia comum, mesmo na faixa de segurança ele teria de ziguezaguear feito um centroavante entre zagueiros para escapar de um atropelamento. Chegando à outra calçada, olhou mais uma vez para trás, querendo se certificar de que não estava sonhando. Não estava. Nenhum carro vinha de um lado, nenhum carro vinha do outro.

Algumas coisas chamaram a atenção de Barata no percurso: desde cambacicas de barriga amarela e beija-flores verde-azulados até portas metálicas baixadas e garagens vazias. Nem mesmo os abomináveis cocôs de cachorro obstruíam seu caminho. Foi então que concluiu: a cidade tinha se mudado para o litoral. Aquelas ruas e avenidas eram dele, só dele.

Voltando para casa, Barata acordou a mulher e os gêmeos. Cismou que iam fazer um piquenique no parque.

– Mas, Barata, lá nunca tem lugar para estacionar!

– Hoje vai ter.

Tinha. Deu até para parar numa vaga com sombra. Os quatro estenderam uma toalha sobre a grama e passaram boas horas ali. Barata e a mulher namorando, os gêmeos correndo para lá e para cá.

– Sabe de uma coisa, amor −, disse a mulher para Barata –, está tão bom aqui que parece que é o nirvana.

– O conjunto?

– Não, Barata! O estado permanente de felicidade e conhecimento atingido através de disciplina e meditação.

– Ah…

A volta para casa foi tranqüila. Não havia motoristas ferozes colados na traseira do carro nem motoqueiros alucinados quebrando seu retrovisor.

Enquanto dirigia, nosso herói considerou que sua mulher tinha razão: as ruas vazias, o futebol em recesso, o recesso do Congresso, a superpopulação espalhada pelas praias… Até os semáforos foram desligados por total inutilidade. Sim, haviam alcançado o nirvana.

Vários dias durou aquela paz.

Porém, num fim de tarde, quando o crepúsculo manchava de vermelho os vidros dos prédios da Avenida Paulista e eles andavam calmamente pelo canteiro central, viram uma repórter de expressão tensa falando para uma câmera: “As principais estradas de acesso à cidade estão totalmente congestionadas! É a volta do feriado. Daqui a pouco a cidade será tomada por uma multidão de automóveis. E, por coincidência, amanhã recomeça o campeonato de futebol e termina o recesso parlamentar”.

– Acho que é o fim do tal nirvana − suspirou Barata.

A pedido dos gêmeos, eles passaram a andar pelo meio da avenida vazia. Caminharam assim até que começaram a ouvir um zumbido. Ele vinha de longe, mas dava para perceber que era uma mistura de ronco de motores, buzinadas, sound sistems no último volume e freadas bruscas.

Entristecidos, voltaram para a calçada.

No mesmo instante, os semáforos da cidade voltaram a funcionar. Estavam todos vermelhos.

José Roberto Torero é escritor, roteirista de cinema e TV e blogueiro (blogdotorero.blog.uol.com.br)