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Comunicação, o desafio da esquerda

O Brasil ainda padece da falta de grandes jornais e outros meios de comunicação de massa independentes. Disputas políticas, ausência de anunciantes, menosprezo do governo federal e monopólio – da mídia comercial e da distribuição em banca – são barreiras a ser vencidas

Por que jornais e revistas de esquerda penam para decolar no Brasil? Boicote dos anunciantes? Sabotagem dos distribuidores? Incompetência dos profissionais? Falta do que dizer ou não saber como dizer? E, se for um pouco de tudo isso, como superar? O volume deses jornais e revistas hoje é insuficiente – em circulação ou tiragem – para fazer frente à imprensa conservadora. É verdade que poucas atividades são tão arriscadas quanto o jornalismo. Ainda mais em tempos de revolução tecnológica. Anunciantes pesados desaparecem de um dia para o outro. Basta lembrar casos como Varig, Banco Santos, BRA. Os donos do dinheiro não investem no jornalismo impresso pela taxa de lucro, que é baixa; entram pelo prestígio, para fazer política, ou para mamar em verbas de publicidades governamentais.

Mesmo assim, três dos maiores jornais brasileiros quebraram na última década. O Estadão virou refém de bancos credores. Gazeta Mercantil e Jornal do Brasil foram comprados por um empresário especializado em arrematar empresas na bacia das almas.

A maior central sindical brasileira, a CUT, com milhares de sindicatos filiados, em 24 anos de existência nunca conseguiu lançar um jornal ou revista de expressão nacional ou mesmo regional. O PT, um dos maiores partidos políticos do mundo, com 27 anos de vida e mais de 800 mil filiados, só mantém uma anêmica revista, Teoria & Debate, de 6 mil exemplares bimestrais.

No Chile, as dificuldades do mercado jornalístico devem ser ainda maiores, porque a população é muito menor, mas o Partido Comunista chileno, com menos de 5% dos votos, leva às bancas seu jornal, toda semana. Na Bolívia, na Venezuela, na Argentina, em países da Europa, circulam jornais de diversos matizes de esquerda, que contestam as políticas dominantes. No Brasil, há meia dúzia de revistas de baixa circulação e nenhum jornal diário. A esquerda brasileira parece não atinar para a importância estratégica da comunicação.

Uma das razões do fracasso de jornais e revistas declaradamente de esquerda é a dificuldade que bons projetos encontram para não sucumbir ao sectarismo ou a disputas internas. Essa característica enterrou quase toda a imprensa alternativa nos anos 70 e contribuiu para a crise do Jornal dos Trabalhadores e do Brasil Agora, duas tentativas de vida curta de fazer circular um órgão oficial de informação do PT.

Outro motivo dos fracassos é a linguagem, doutrinária, distante do cotidiano do povão. Muitos slogans, poucos fatos e pouca reportagem. É o que acontece, por exemplo, com o jornal do MST, o Brasil de Fato. A linguagem tem de ser contemporânea, aberta, e não refletir pensamentos que não se renovam. O novo Pasquim e a revista Bundas, por exemplo, que não eram de esquerda, mas de contestação, fracassaram porque seu humor envelheceu.

No mundo sindical, em que o lançamento de um jornal nacional poderia até mesmo economizar recursos, ao consolidar grande universo noticioso, ainda predominam a atomização, o atrelamento da comunicação aos interesses políticos do grupo dirigente ou, na melhor hipótese, às lutas locais da categoria. São centenas de veículos que influenciam a base social, mas não conseguem romper o monopólio dos grandes veículos oligárquicos de comunicação de massa.

Focos de resistência

Hoje, o barateamento dos custos levou a uma explosão de revistas de pequena circulação, inclusive revistas temáticas de alto padrão editorial, em todos os campos do conhecimento e da atividade humana. Nos últimos dez anos, de 1996 a 2006, o número de títulos de revistas aumentou em quase 80%, apesar da circulação total ter caído 12%. A tecnologia tornou viáveis revistas de menor circulação. É a fragmentação do mercado. Mesmo assim é ínfimo o número de revistas novas de esquerda, centro-esquerda.

Algumas formas desse tipo de jornalismo, embora de circulação pequena, conseguem incomodar a grande imprensa. São empreendimentos diferentes, mas liderados por personalidades jornalísticas fortes, que não entregam os pontos facilmente. Esse era o traço comum dos condutores dos jornais alternativos dos anos 70. Três desses integrantes da “velha guarda” alternativa que permanecem ativos são Raimundo Pereira, fundador de Opinião e Movimento, que hoje dirige o projeto Retratos do Brasil; Elmar Bones, um dos fundadores do Coojornal e atualmente diretor do mensal Já e de seu associado Jornal do Bairro, em Porto Alegre; e Sérgio de Souza, fundador do Bondinho, que há dez anos está à frente da revista mensal Caros Amigos.

Caros Amigos, mesmo com sua imagem consolidada e indiscutível prestígio, recebe pouquíssima publicidade e não sobreviveria se dependesse dela. A solução é diversificar. O site tem alguns anúncios e lojinha virtual. A editora, Casa Amarela, publica um fascículo paradidático e livros que “ajudam um pouco” a manter a empreitada, diz Sérgio de Souza. O site promove a revista, que por sua vez promove o site, ambos vendendo livros e assinaturas.

Outro ingrediente forte de Caros Amigos, sua linha editorial, evita o ranço doutrinário e trata das questões mais pela ótica da contracultura e dos valores. Também valoriza a reportagem. A edição de novembro, por exemplo, traz uma entrevista inédita com Harry Shibata, o médico que assinava atestados de óbitos fajutos das vítimas da ditadura. Nos últimos anos a revista assumiu mais claramente uma posição à esquerda, em sintonia com o que vem se passando no Brasil e na América Latina. Tira 40 mil exemplares e tem 10 mil assinaturas.

Quase no extremo oposto, Retrato do Brasil é assumidamente doutrinário, embora não panfletário. São fascículos temáticos de qualidade que já circularam em banca e hoje são vendidos agrupados, na forma de enciclopédia. Já foram vendidas 6 mil coleções para bibliotecas. Está na segunda edição, revista, de 5 mil exemplares. É uma mostra da má vontade do sistema em relação a uma imprensa de contestação. “Apesar de sua qualidade editorial ter sido reconhecida por dirigentes do MEC, nunca foi incluída nas compras do governo para distribuir a professores e alunos”, reclama Raimundo Pereira. A muito custo, vende coleções para algumas prefeituras, como as de São Paulo e Belo Horizonte, e governos estaduais, como Paraná e Pernambuco.

No final de novembro, Raimundo foi surpreendido pela decisão da revista Carta Capital – a mais independente e progressista das semanais – de romper um convênio patrocinado pela Petrobras para publicar dez encartes temáticos de Retratos do Brasil. Estavam no quarto encarte. Raimundo atribui essa decisão a uma divergência editorial – ter “pegado pesado” em Al Gore e na moda das grandes empresas de se apresentarem como socialmente responsáveis, em conluio com a grande imprensa. Resultado: começa a passar por novo teste nas bancas, lançando 20 mil exemplares.

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Elmar Bones, do jornal Já, de Porto Alegre: “O que menos vale é contar com apoio do governo”

Viabilidade comercial

Dois projetos totalmente diferentes, o de Elmar Bones, em Porto Alegre, e o coordenado pelo jornalista Celso Horta, no ABC paulista, têm em comum a identificação com comunidades bem definidas. No entanto, ambos acabam de ter surpresas desagradáveis, o que mostra os perigos que rondam a imprensa alternativa. Celso Horta valeu-se do apoio de prefeituras numa região com forte presença de esquerda lançando o ABCD Maior, jornal que começou mensal e logo se tornou o quinzenal de maior circulação na região, com 70 mil exemplares. Quando o jornal fazia planos para virar semanal, divergências políticas em torno das eleições municipais, em 2008, afetaram a publicidade. “Projetos não podem depender de apoio político”, reclama Celso Horta. “Ou se montam os projetos com base comercial, ou não sobrevivem.” A mesma advertência é feita por Elmar Bones, do jornal Já, de Porto Alegre: “O que menos vale é contar com apoio do governo”, alerta. “A Caixa, por exemplo, de um contrato de publicidade de 100 mil reais, até hoje só pagou 20 mil.”

Além do alternativo mensal Já, com 21 anos de existência e vencedor de vários prêmios jornalísticos, ele tem outra publicação perto também dos 20 anos. O Jornal do Bairro tirava quatro edições distintas, mas o Zero Hora, do grupo monopolista RBS, passou a publicar cadernos de bairro, solapando seu mercado. Hoje tira só uma edição de 10 mil exemplares, distribuídos gratuitamente em dez bairros centrais de Porto Alegre, em que vivem 250 mil pessoas. Sobrevive de pequenos anúncios.

Com a recente aquisição do controle acionário da petroquímica Copesul (60%) pela Braskem, foi suspensa toda a publicidade das duas empresas no Já. O Já vinha tirando 5 mil exemplares, dos quais vendia 2.500. Elmar também publica livros, com 30 títulos já lançados, e se vale da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. Para sobreviver aos últimos golpes lançou o Já na forma de revista temática, com tiragem de 6 mil exemplares em banca e mais 6 mil por mailing – remessa para cadastro de interessados. O modelo facilita a captação de anúncios e de apoio institucional, alem de ser mais durável. A publicação sai em formato de jornal, mais barato, mas sem periodicidade definida, só quando surge algum assunto mais “quente”. Uma espécie de “guerrilha jornalística”.

Um caso interessante de revista que teve de negar parte da identidade para sobreviver é o da Raça Brasil, mensal, que vende quase 700 mil exemplares. É um sucesso, mas já passou pelo pior, quando anunciantes não queriam associar sua imagem à dos negros. A revista abandonou sua linha editorial de contestação, virando revista de moda e cosméticos para consumo de uma nova pequena burguesia negra. Lentamente, segundo seu fundador, Big Richard, anúncios começaram a chegar. Dez anos depois de lançada, repleta de anúncios dedicados à beleza, Raça Brasil só se distingue das revistas convencionais da Abril pela cor dos corpos que enaltece.

Furar o bloqueio

Um dos problemas da imprensa alternativa dos anos 70 era a distribuição. Para ter alcance nacional, como era o projeto político dos partidos que sustentavam alguns jornais, era preciso imprimir 20 mil exemplares. Se vendia menos, como acontecia com a maioria, era prejuízo certo. Em reação à internet, os grandes grupos editoriais tentam manter o domínio de mercado através do controle dos canais de comercialização, como acaba de acontecer com a compra da segunda maior distribuidora brasileira, a Fernando Chinaglia, que tinha 30% do mercado, pela Dinap, do grupo Abril, então dona dos outros 70%. A Abril, que já concentra maioria esmagadora da publicidade em veículos impressos, criou agora um monopólio na distribuição aos pontos-de-venda e ganhou muito mais poder para complicar a vida dos concorrentes.

Para o jornalista Renato Rovai, fundador da revista Fórum, já complicou: a nova empresa, Tree Log, exige agora tiragem mínima de 30 mil exemplares para distribuição nacional. Fórum nasceu do Fórum Social Mundial. Produto de uma geração de jornalistas contestadores formada após a redemocratização do país, é assumidamente de esquerda e com muito custo e perseverança completou seis anos. Mas não tira ainda 30 mil exemplares. Os prejuízos são habituais. Quase sem publicidade, sobrevive graças à venda de cotas a entidades ligadas ao movimento e à receita obtida por outros produtos e serviços de sua editora, a Publisher Brasil.

Raimundo Pereira minimiza o problema da circulação, dizendo que algumas minidistribuidoras fazem o serviço miúdo de coleta e devolução do encalhe que as grandes rejeitam. Custa mais, mas é uma alternativa ao obstáculo. Elmar Bones também enfrentou problemas em banca. O papel do Já amarelava rapidamente e os jornaleiros tiravam da exposição. A tiragem de Caros Amigos está acima do mínimo, mas abaixo da escala em que ganharia mercado das revistas convencionais. Ajuda a boa base de assinantes.

Nilson Viana, do MST, está assustado com a formação do monopólio de distribuição. Em entrevista ao site Observatório do Direito à Comunicação, ele diz que há um mês a Fernando Chinaglia começou a impor uma série de exigências novas como parte da nova gestão, inclusive “metas de venda”. É um caso claro de ameaça potencial à livre circulação da informação. A fusão deveria ser impedida liminarmente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), autarquia subordinada ao Ministério da Justiça. Mas quem confia no Cade? Renato Rovai considera que uma solução seria acionar os Correios. Para ele, o governo deveria instruir a estatal a criar um serviço próprio de distribuição de revistas, para combater o monopólio ou ao menos servir de parâmetro para as tarifas cobradas.

O problema é que o governo nem sequer tem uma política que estimule a produção alternativa de comunicação. Adormece em Brasília há quatro anos uma proposta de distribuição mais equilibrada das verbas de publicidade, de modo a garantir uma cota que minimamente assegure os veículos alternativos – em respeito ao seu enorme público potencial e à democratização do acesso à informação. Além de deter o monopólio da audiência e da distribuição, as grandes emissoras de rádio e TV e a mídia conservadora comercial ainda absorvem quase toda a receita publicitária dos órgãos públicos e das estatais. O monopólio na distribuição ameaça principalmente as revistas que almejam circulação ampla, capazes de competir em escala com revistas da própria Abril, como é o caso desta Revista do Brasil, que já tira 360 mil exemplares distribuídos pelas entidades sindicais que a criaram e está começando a chegar às bancas (leia mais sobre o projeto no editorial, à pagina 5).

A solução na internet
Se eu fosse hoje fazer um projeto de um jornal de influência nacional, optaria por um site na internet, de alto padrão jornalístico, capaz de gerar sua própria reportagem, com colunas analíticas e interpretativas e uma janela de TV Web, para debates. Uma espécie de UOL de esquerda.

O UOL anuncia que tem 1,7 milhão de assinantes e 9 milhões de visitantes. Quase tanto quanto a tiragem total de todos os diários brasileiros. A internet é comunicação de massa e é a grande chance do campo popular, pelo seu baixo custo de produção, modernidade, facilidade de circulação e acesso. E não precisa de concessão do governo. Há no Brasil 40 milhões de internautas e 866 mil domínios, ou seja, sites, jornais e blogs com o final “br”. No mundo são 110 milhões de blogs. É um universo de comunicação totalmente interativo, dotado de grande capacidade de articulação dos movimentos sociais.

Carta Maior, um dos mais importantes sites de debate político e ideológico no Brasil, é internet pura. Debates ao vivo pela sua TV Web atraem milhares de internautas numa única transmissão. Repórter Brasil é outro projeto internet pura. Quando foi lançado por Leonardo Sakamoto, dedicava-se à denúncia de trabalho escravo e degradante. Hoje conta com 30 jornalistas, uma grande diversidade de projetos e muitas fontes de patrocínio. Um sucesso.

O site do ABCD Maior já é tão importante quanto o jornal impresso e se tornou o carro-chefe do projeto local, que tem também um programa diário de rádio de 30 minutos, permitindo ao público intensa participação nos debates dos problemas da região. A esquerda já descobriu a internet, mas ainda falta entender seu potencial revolucionário.

Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários livros sobre jornalismo