história

Outubro de 1917: Todo o poder aos sovietes

Entre a tirania stalinista e o legado do bem-estar social decorrente da sombra revolucionária, aqueles dez dias que abalaram a Rússia, em 1917, são essenciais à compreensão do mundo contemporâneo

Viktor Korotayev /REUTERS

Praça Vermelha, em Moscou, onde fica o Kremlin e a Catedral de São Basílio, ainda é cenário para desfiles militares como a parada que comemora o dia em que os soviéticos tomaram o Parlamento alemão, no fim da 2ª Grande Guerra

A expressão “os dez dias que abalaram o mundo” ficou famosa a partir do título do livro em que o jornalista norte-americano John Reed relata, como testemunha ocular, o momento em que os trabalhadores assumiram o poder na primeira revolução socialista vitoriosa, em 25 de outubro de 1917. O Estado que emergiu daquele movimento – a União Soviética – já desapareceu, mas o mundo ainda sente os tremores da tomada de poder pelos comunistas liderados por Lenin. “Toda vez que os trabalhadores desafiarem a dominação e a exploração sob o capitalismo, a Revolução Russa será referência”, afirma o cientista político Lúcio Flávio de Almeida, da PUC-SP.

Noventa anos depois (este texto foi escrito para a edição de outubro de 2007 da Revista do Brasil), turistas fazem fila para visitar o corpo embalsamado de Lenin, na Praça Vermelha, em Moscou. Na saída do mausoléu de mármore negro, o visitante percorre os túmulos dos “heróis da União Soviética”, enterrados ao pé das muralhas do Kremlin, fortaleza medieval que é o próprio símbolo do poder no país. Conquistas, contradições e fracassos da revolução estão representados naquela galeria mortuária. Lá está também Josef Stalin, um dos tiranos mais brutais do século passado. Lenin reprovava a maneira truculenta de Stalin tratar as divergências. O ditador bigodudo, que o sucedeu em 1924, repousa numa cova igual à de outros dirigentes, como Leonid Brejnev, que ordenou a invasão da Tchecoslováquia (1968) e do Afeganistão (1979).

A Praça Vermelha abriga, por outro lado, personagens admiráveis como o marechal Georgi Jukov, comandante do Exército Vermelho em 1945. Jukov esteve à frente das tropas que derrotaram os nazistas nas batalhas decisivas da 2ª Guerra Mundial e comandou a vitória final em Berlim, quando um soldado soviético balançou a bandeira da foice e martelo no topo do prédio semidestruído do Parlamento alemão. Sem o esforço titânico dos soviéticos, que amargaram 20 milhões de mortes na luta contra o nazismo, o conflito provavelmente teria tido outro desenlace. Lá está, também, o próprio John Reed, militante de esquerda dos Estados Unidos que chegou a combater ao lado dos revolucionários durante a guerra civil que se seguiu a 1917 e morreu de tifo em 1920, num hospital de Moscou.

Mas o que mais me impressionou no breve trajeto pelo túnel do tempo da ex-URSS foi a homenagem a um famoso por outro motivo. Todos os túmulos ao lado do Kremlin estavam, quando estive lá, em julho, enfeitados por um par de cravos vermelhos. Apenas um, entre dezenas de mortos ilustres, recebera de mãos anônimas flores comuns: o do cosmonauta Yuri Gagarin, primeiro ser humano a viajar ao espaço, em 1961, a bordo da nave Vostok. Sua presença ali sublinha o avanço econômico, tecnológico e a admiração alcançados pela URSS antes de esbarrar nos limites que a fizeram naufragar.

Na Rússia capitalista de hoje, o aniversário da revolução será desdenhado pela agenda oficial. O presidente Vladimir Putin, ex-agente da KGB, a polícia secreta do regime soviético, governa com apoio dos antigos “oligarcas” do Partido Comunista que privatizaram, em benefício próprio, as fatias mais gordas do patrimônio estatal. A herança soviética divide opiniões. “Há polarização entre os que encaram a revolução com simpatia ou como catástrofe”, observa o economista Alexander Kolganov, da Universidade de Moscou. “Entre os apoiadores há outra divisão: os nacionalistas, para quem a revolução fez da Rússia segunda maior potência do mundo; e os socialistas, que vêem nos bolcheviques os seus ideais de justiça social.”

Na avaliação de Kolganov, um legado mais concreto é o conjunto de conquistas sociais que ainda vigoram no país, como o largo alcance da educação e saúde. “Nem Yeltsin (o presidente que liderou a transição para o capitalismo) nem Putin conseguiram dissolver a segurança social no país”, diz. O economista Kolganov explica que, para a maioria dos russos, Lenin e o socialismo são assuntos do passado. A população estaria hoje voltada para a sobrevivência numa sociedade competitiva e, ao contrário do que sonhavam os bolcheviques, cada vez mais desigual.

Dados organizados pela economista brasileira Lenina Pomeranz, do Instituto de Estudos Avançados da USP, mostram a espantosa concentração de renda ocorrida no período pós-soviético. O contingente da população nas faixas de renda mais baixas reúne 77%, enquanto 22,6% dos russos estão num nível médio e apenas 0,4% pode ser considerado rico. Em 1989 as camadas médias compunham dois terços do total.

Empobrecimento

Lenin ainda é a figura histórica mais popular da Rússia e sua lembrança permanece visível nas estátuas que escaparam da onda de demolição dos ícones do regime soviético. Não há como apagar a memória daquele que foi, segundo o historiador Eric Hobsbawm, o personagem mais importante do século 20. No mundo inteiro estão sendo organizados eventos em que se discutirá o legado de 1917. No Departamento de História da USP, um seminário aberto ao público – Revolução Russa: uma Jovem de 90 Anos – é organizado pelo professor Osvaldo Coggiola para ocorrer entre 12 e 14 de novembro (informações pelo telefone 11 3091-3760). “A luta vitoriosa dos bolcheviques continua sendo a principal experiência revolucionária da era contemporânea”, enfatiza Coggiola.

Para ele, os “descaminhos” que ocorreram depois de 1917 podem ser analisados a partir de dois pontos de vista: como álibi para desqualificar o socialismo ou como ponto de partida para a superação dos erros cometidos. Afinal, o que foi a Revolução de Outubro e o que ela significa na atualidade? Como se explica o chocante contraste entre a esperança na vitória dos socialistas e os fracassos que levaram ao fim da União Soviética?

Essa experiência pode ser entendida a partir das circunstâncias que envolveram a tomada do poder pelos bolcheviques, como eram conhecidos os comunistas russos em 1917. Quando Karl Marx e Friedrich Engels escreveram o Manifesto Comunista, em 1848, nem de longe imaginavam que o primeiro país a abolir o capitalismo fosse a retrógrada Rússia, onde, para se ter uma idéia, somente em 1861 os camponeses ficaram livres da servidão, regime de trabalho da Idade Média. O socialismo, de acordo com Marx, só poderia ser implantado nas nações de maior desenvolvimento capitalista, como Inglaterra, França ou Alemanha, onde a classe trabalhadora já estaria em condições de exercer o poder.

O que precipitou o levante revolucionário na Rússia foi a incapacidade da burguesia de oferecer uma alternativa à monarquia absolutista, que desmoronou diante da crise provocada pelas derrotas do exército imperial russo na 1ª Guerra Mundial. Em fevereiro de 1917, os trabalhadores de Moscou, exasperados com a guerra e com a fome, deflagraram uma greve geral. As tropas despachadas pelo czar Nicolau II, ao invés de reprimir o movimento, confraternizaram com os grevistas. Depois de quatro dias de caos, a monarquia ruiu e formou-se um governo provisório, liderado pelos partidos liberais.

O povo reivindicava o fim da participação russa numa guerra que só interessava às elites, envolvidas nas disputas geopolíticas européias. Os jovens das classes pobres, enviados aos milhões para o matadouro dos campos de batalha, desertavam e voltavam para casa. A população urbana exigia um fim à escassez de alimentos causada pela guerra. E os camponeses – 85% da população – queriam a redistribuição das terras, em mãos da nobreza.

Paz, pão e terra

Durante os oito meses de governo provisório os políticos burgueses falharam em atender às demandas populares. Trabalhadores do campo e das cidades se organizaram em conselhos, os sovietes, nos quais as decisões eram tomadas com a participação de todos. No início os bolcheviques eram minoria entre os partidos de esquerda que atuavam nos sovietes. Mas eram os únicos que defendiam, com coerência, o lema “paz, pão e terra”. A única vantagem real com que Lenin e os bolcheviques contavam era a capacidade de reconhecer o que as massas queriam; “de conduzir, por assim dizer, por saber seguir”, explica Hobsbawm.

Em outubro de 1917, quando o governo provisório resolveu reprimir os conselhos de trabalhadores, os bolcheviques já eram maioria. Lenin, ao ver neles uma alternativa de poder, lançou a palavra de ordem da insurreição: “Todo o poder aos sovietes”. Com a adesão dos soldados que voltavam das frentes de batalha, os revolucionários assumiram rapidamente o controle das principais cidades, Moscou e São Petersburgo. Os bolcheviques emitiram, sem perda de tempo, os decretos que atendiam aos anseios do povo, como o da reforma agrária. As fábricas, abandonadas por seus proprietários, não foram estatizadas de imediato, mas colocadas sob a gestão dos operários. Um acordo de paz foi assinado, mas durou pouco. Durante quatro anos, a guerra civil entre as forças revolucionárias (os “vermelhos”) e conservadoras (os “brancos”) espalhou morte e devastação por toda a Rússia.

Nem Lenin nem os demais líderes bolcheviques, como Leon Trotski, que organizou o Exército Vermelho, acreditavam que seria possível construir o socialismo isoladamente, num único país. O movimento seria o estopim de uma revolução internacional que mobilizaria trabalhadores em nações capitalistas mais adiantadas. A febre revolucionária se espalhou pela Europa Central. No entanto, somente na Rússia, gigante e subdesenvolvida, os revolucionários mantiveram o poder. A eles só restava a opção de levar adiante o projeto socialista, em condições mais desfavoráveis que a imaginada em 1917. Nesse processo, muitos erros foram cometidos.

“Lenin, Trotski e seus companheiros reduziram drasticamente as liberdades democráticas a partir de 1918, o que facilitou o processo de burocratização posterior”, afirma o cientista político Michel Löwy, da Universidade de Paris. Ele recorda que Rosa Luxemburgo, uma das líderes da fracassada revolução na Alemanha, apoiava com entusiasmo os bolcheviques, mas criticava a inclinação para práticas autoritárias. Ela apontava o esvaziamento dos conselhos operários, que se tornavam mero instrumento do Partido Comunista.

Ainda assim, a transformação do jovem regime soviético na monstruosa máquina estatal do stalinismo não foi automática. “Não se deve estabelecer um sinal de identidade entre o Estado revolucionário de 1917 a 1924 e o Estado contra-revolucionário da burocracia”, alerta Löwy, lembrando que quase todos os líderes do movimento de 1917 foram eliminados, incluindo Trotski, assassinado em 1940 por um agente stalinista durante seu exílio, no México.

Até hoje se discute se o regime que sobreviveu até 1991 pode ser chamado de socialismo, uma vez que o poder, exercido em nome dos trabalhadores, sucumbiu à burocracia e ao totalitarismo. Por outro lado, as sete décadas de existência da URSS mostraram que é possível conduzir um país moderno sem a propriedade privada dos meios de produção – ou seja, sem patrões. O regime soviético transformou um país atrasado numa poderosa economia mundial, capaz de vencer a Alemanha nazista, de enviar naves ao espaço, de proporcionar à população condições de alimentação, saúde, moradia e educação. “Para milhões de habitantes das aldeias, o desenvolvimento soviético significou a abertura de novos horizontes, a fuga das trevas e da ignorância para a cidade, a luz e o progresso”, constata Hobsbawm em seu livro A Era dos Extremos.

Grande ironia é que a experiência soviética trouxe mais benefícios para os trabalhadores em outras partes do mundo do que para os próprios russos. Muitos estudiosos estão convencidos de que o medo do socialismo foi um dos principais motivos que levaram os países capitalistas mais desenvolvidos, sobretudo na Europa Ocidental e na América do Norte, a empreender importantes reformas sociais. Nesses países, o “perigo bolchevique” teria removido a resistência das classes dominantes às reivindicações históricas dos sindicatos de trabalhadores, como salários e jornadas dignos e proteção social – conquistas que agora, sem o fantasma do comunismo, se vêem ameaçadas pela ofensiva neoliberal. Em outras partes do mundo, o exemplo da Revolução Russa inspirou lutas de libertação contra o colonialismo europeu.

Talvez ainda seja cedo para uma avaliação do legado de 1917. A única certeza é que, sem levar em conta esse acontecimento grandioso, o mundo em que vivemos se torna incompreensível. Para aqueles que não aceitam o triunfo do capitalismo após a dissolução da URSS como “o lance final da História”, a proeza dos bolcheviques segue como uma referência permanente.

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