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Zé Pitt, o brasileiríssimo

Com 43 filmes no currículo, José Dumont é conhecido por seus personagens ora malandros, ora sofridos e batalhadores. Enfim, por personificar nas telas o povo brasileiro

rodrigo queiroz

Dumont: “Nosso cinema é muito engraçado. Amadurecemos de alguma forma, há um ponto de equilíbrio entre o autoral e o popular. Só que a gente não vê passar os filmes.”

José Dumont é autodidata na arte de representar. Bem que ele tentou entrar na Marinha e chegou a trabalhar como carteiro em São Paulo. Depois de ver uma peça teatral de graça no Centro paulistano, algo lhe dizia que iria ser ator: “Era uma tragédia com Ewerton de Castro e Cláudio Corrêa e Castro. Abria um pano e começava um mundo mágico. Fiquei besta”, recorda.

Por ter tipo físico e personalidade de fácil associação com o povo brasileiro, José Dumont conseguiu transitar com facilidade entre as grandes produções do cinema brasileiro e as mais alternativas. Começou a se destacar em 1977, em Morte e Vida Severina, de Zelito Viana, e Lúcio Flávio – Passageiro da Agonia, de Hector Babenco. A partir daí, logo passaria a freqüentar de roteiros de forte contestação a “superproduções” – ao menos para os padrões nacionais.

Ainda no final dos anos 70, esteve em Tudo Bem, de Arnaldo Jabor; Se Segura, Malandro, de Hugo Carvana; Amor Bandido, de Bruno Barreto; e Gaijin – Os Caminhos da Liberdade, de Tizuka Yamasaki. A consagração viria em 1981, quando João Batista de Andrade realizou O Homem Que Virou Suco – fenômeno ilustrativo do quanto os circuitos alternativos, como centros comunitários e salas de aula, podem ser uma eficiente saída à má vontade das salas exibidoras comerciais com o cinema nacional.

José Dumont é um dos raros casos da dramaturgia brasileira em que a popularidade foi conquistada antes no cinema do que na TV, e brinca com seu perfil: “Não sou um galã. Não sou o Brad Pitt. Sou o Zé Pitt. Fui aproveitado no início da carreira por cineastas preocupados em fazer filmes voltados para o social, para questões da liberdade, do homem comum. Foi o caso de O Homem Que Virou Suco, no qual minha cara caiu como luva. João Batista de Andrade não me escolheu à toa”, avalia.

Lembra com orgulho participações como em A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, baseado no romance de Clarice Lispector, em que atuou ao lado de Marcélia Cartaxo, premiada com o Urso de Prata no Festival de Berlim. Ou Narradores de Javé (2003), de Eliane Caffé, que, apesar de não ter sido muito visto nos cinemas, atraiu o interesse de professores e foi bastante exibido em escolas.

Outro trabalho muito bonito é Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles, com quem já trabalhara em O Primeiro Dia (1998). “Poucos viram o filme com a grandeza que ele tem. É uma história albanesa transplantada para o Nordeste. Fala de 2 mil anos de existência, de brutalidade, de esmagamento do homem”, descreve.

Das grandes produções, entre um filme dos Trapalhões aqui e do padre Marcelo Rossi ali, a que destaca é 2 Filhos de Francisco (2005), de Breno Silveira. “É uma história fantástica. Um personagem como seu Francisco é raro. Meu personagem representa o virador, tão coitado quanto os outros. A cena da rodoviária, por exemplo, foi muito bem escrita pela Carolina Kotscho. Não dá para fazer aquilo de improviso. O Breno é uma espécie de agricultor de emoções e me chamou para fazer o filme porque sabe que tenho humor. Se não tivesse humor, o cara virava um carrasco. O Brasil tem dois tipos de homem comum. Seu Francisco é um deles, inteligente, duro, que não teve condição de aprender, mas é dono de uma moral exuberante. E tem o cara muito estudado, mas sem moral”, avalia.

José Dumont também pode se vangloriar de ter trabalhado com os mais importantes cineastas, de Nelson Pereira dos Santos a Hector Babenco, que o dirigiu em Lúcio Flávio e em Brincando nos Campos do Senhor (1991), junto com Stênio Garcia e Nelson Xavier e estrelas internacionais como Darryl Hannah, Tom Berenger, John Lithgow, Aidan Quinn e Kathy Bates. “O Tom Berenger bebia umas cervejas com a gente e contava piada. E a Kathy Bates me procurava para trocar umas idéias. O elenco brasileiro ficava numa casa durante as filmagens; os americanos, cada um em seu trailer; e os índios, num catamarã”, lembra.

O paraibano nascido há 57 anos na pequena Belém de Caiçara foi recentemente homenageado num evento promovido pelo sindicato dos bancários de seu estado natal, o Bancarte. E, depois de 40 longas e três curtas-metragens, diz que nunca ganhou dinheiro com o cinema. “Na realidade, o cinema brasileiro só deu algum dinheiro para poucas pessoas. Tanto é que hoje estou fazendo novela na TV Record. Nosso cinema é muito engraçado. Amadurecemos de alguma forma, há um ponto de equilíbrio entre o autoral e o popular. Só que a gente não vê passar os filmes.”