Mídia

O mundo como um cassino

Dez lições da crise do mercado imobiliário

divulgação

Os Estados Unidos não vão quebrar nem o capitalismo vai acabar. Mas o estouro da “bolha imobiliária” americana balançou dois pilares da ideologia neoliberal: o de que os mercados agem racionalmente e o de que governos não têm de interferir na economia. Tudo ao contrário: mercados entraram em pânico e seis bancos centrais tiveram de injetar 400 bilhões de dólares para salvar o sistema, a maior intervenção da história do capitalismo. Essas são as duas principais lições da crise.

A mídia culpa o mercado imobiliário americano, que foi só o estopim. A cada três ou quatro anos estoura uma grande bolha e a causa estrutural é sempre a mesma: inundação de dólares num mercado desregulado, verdadeiro cassino em que nenhuma moeda tem lastro e os especuladores fazem apostas de alto risco, especialmente nas oscilações cambiais. A explicação do então diretor-gerente do FMI, Jacques de la Rosière, quando estourou a primeira crise do dólar nos anos 70, é didática: “Só há dois lugares no mundo para guardar dólares, um banco americano ou uma caixa de sapatos”. Na época os americanos inundaram o mundo com dólares comprando petróleo e materiais para a Guerra do Vietnã. Agora é para a guerra contra o Iraque. Gastam 800 bilhões de dólares por ano importando bens e serviços, mais do que ganham exportando.

Os detentores desses dólares em excesso não podem guardá-los numa caixa de sapatos. Compram ações na Bolsa de Nova York, títulos do Tesouro Americano (só a China comprou 900 bilhões), propriedades em Miami e cotas de fundos de investimento. Mesmo quando eles trocam por outras moedas como o real (para aplicar no nosso mercado) ou euro (na Europa), quem recebe esses dólares é obrigado a aplicar no mercado americano. Incharam o mercado imobiliário e o acionário e os fundos de investimento multiplicaram-se, mexendo com trilhões de dólares – ninguém sabe ao certo o tamanho da bolha. Foi só a economia americana esfriar no começo do ano e parar de subir os preços das casas para a bolha estourar.

A terceira lição é a fragilidade dos EUA. Percebeu-se que, se o governo chinês quisesse, derrubaria o capitalismo financeiro americano; bastaria entrar no mercado vendendo. O medo de um gesto brusco explica as inúmeras recentes viagens do secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, à China.

Lição quatro: é perigoso desregular o mercado financeiro. O governo americano flexibilizou os financiamentos da casa própria, os bancos venderam esses contratos a outros bancos, que por sua vez lançaram títulos na praça para levantar mais dinheiro e poder comprar novos contratos. No fim só um de cada cinco financiamentos estava com o credor original. E nós caminhávamos na mesma direção. Na véspera da crise o presidente de um grande banco brasileiro propunha o desmonte da regulamentação das cadernetas de poupança. E mesmo depois da crise os bancos cobram do governo a introdução da “portabilidade dos empréstimos imobiliários e contingenciados”, para poder negociar entre si pacotes de financiamentos, exatamente o que levou o mercado americano ao descontrole.

Quinta lição: um país periférico nunca tem moeda forte. O real era forte na aparência, mas a primeira reação à crise foi a fuga para o dólar, apesar de o epicentro do terremoto estar na pátria do dólar. Por isso, não se deve mudar o sistema de controle de capitais no Brasil, pelo qual remessa de dólares ao exterior tem de ser justificada. Os estrangeiros detêm cerca de 41 bilhões em ações e títulos do governo que podem vender a qualquer momento para comprar dólares e fugir do país.

A sexta lição é a importância da diversificação das nossas exportações e do fortalecimento do Mercosul, que pode atenuar o impacto da crise americana sobre nosso comércio exterior. Hoje, só 18% das nossas exportações são para os EUA. A sétima é a urgência de reestruturar nossa dívida interna, quase toda de curto prazo, com títulos que podem ser descartados todos os dias. É o calcanhar-de-aquiles de nossa economia, lição de casa que o governo Lula não fez.

E as três lições finais são: o jornalismo econômico fracassou e, a reboque dos analistas de bancos, não soube ou não quis interpretar os sinais; nunca acredite nas agências de avaliação de risco, que sabiam da iminência da crise e, “assim” como os bancos, não alertaram investidores; e nunca se deixe levar por gerentes que tentam empurrar cotas dos novos fundos “multimercado”, a coqueluche dessa grande bolha de investimentos financeiros especulativos.

Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários livros sobre jornalismo