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Berlim dos heróis esquecidos

Um túmulo vazio e um homem desconhecido. Assim se pode descrever um dos recantos mais lindos de Berlim, desconhecido da maioria dos visitantes da capital da Alemanha, onde jaz uma cicatriz que não desaparece, como os ideais que não morrem

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Ilusões Perdidas – Em Adeus, Lênin! uma militante convicta dos ideais comunistas entra em coma às vésperas da queda do muro de Berlim. Quando acorda, seu filho faz de tudo para que ela não perceba que o mundo à sua volta mergulhou no capitalismo selvagem

O recanto fica em Friedrichshain, que quer dizer “O bosque (ou o parque, no caso) Friederich”, na antiga Berlim Oriental. Para chegar até lá é necessário ir até a Alexanderplatz, uma vasta praça em frente ao prédio vermelho da prefeitura de Berlim. Nessa praça está um dos símbolos mais procurados da cidade: a enorme torre com um restaurante giratório quase ao topo.

O “parque Frederico” atrai menos gente, mesmo dos arredores, embora seja concorrido nos dias de verão. De Alexanderplatz até lá deve-se ir até os fundos da praça, já perto da estação do metrô, e lá tomar o bonde – sim, o bonde! – número 6. Daí seguir umas quatro paradas: à esquerda se vêem os verdes do parque.

Descendo do bonde deve-se atravessar a avenida, à esquerda. No parque, toma-se à direita. E caminha-se um bom pedaço, até chegar a uma rua calçada – sim, calçada! – com paralelepípedos. Atravessando-se a rua, toma-se à esquerda. De repente, no meio dos arbustos povoados por pássaros, mesmo no inverno, descortina-se um soldado. Soldado? Marinheiro, pelo gorro? Tanto faz. Está armado. Mas é de granito. É uma estátua.
Logo atrás dele vê-se o recanto. É um quadrado, com cerca formada por ciprestes, e um gramado no meio. Entre os ciprestes que o circundam há lápides. São túmulos. As lápides são pequenas e estão dispostas no chão. Num dos cantos do quadrado há um aglomerado de lápides maiores. São diferentes, sobressaem do chão, parecem caixões semi-enterrados. No centro do quadrado há uma pedra com palavras inscritas. Ali estão enterradas as vítimas da repressão contra os levantes populares de 1848 e de 1918. Ao todo somam umas 40 lápides. Mas que lápides!

Uni-vos!

Em 1848 trabalhadores, estudantes, idealistas e libertários se levantaram em nome dos seus direitos e das liberdades democráticas diante dos governos conservadores e monarquistas em quase toda a Europa. Houve levantes em Paris, Madri, Viena, Munique, Berlim e outras cidades. À futura Itália o levante popular levou de volta o condottieri Giuseppe Garibaldi e sua mulher, a brasileira e farroupilha Anita, que lá morreu.

Em fevereiro desse mesmo ano Karl Marx e Friedrich Engels lançaram o Manifesto Comunista, com seu famoso motto: “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos. Nada tendes a perder senão vossas cadeias”.

Os levantes de 1848, em toda parte, depois de rápidas e efêmeras conquistas, foram reprimidos a ferro e fogo num movimento político que consolidou as alianças conservadoras entre as novas burguesias industrial e financeira e os remanescentes das fanadas aristocracias de origem rural. Na França isso deu no regime de Napoleão III. Na futura Alemanha, até então um território de principados, ducados e pequenos condados desunidos, deu num regime progressivamente unificado sob o comando da Prússia, ao norte, com centro em Berlim.

As lápides maiores são das vítimas da repressão aos movimentos de trabalhadores de 1918, ao fim da Primeira Guerra Mundial. São cerca de uma dezena. Era um momento crucial. A Alemanha exaurida pela guerra se rendia às potências França-Inglaterra-Estados Unidos. Exasperados, os trabalhadores exigiam a paz e melhorias nas condições de vida. Os líderes do movimento eram chamados de “espartaquistas”, numa referência ao legendário líder da revolta dos gladiadores romanos, 2 mil anos antes. Enquanto a guerra e a Alemanha recém-criada agonizavam, os líderes foram caçados e assassinados. Entre eles os mais famosos eram Karl Liebknetch e Rosa Luxemburgo.

Rosa foi caçada, espancada e jogada ainda viva no gelado Rio Spree. Não se sabe onde seu corpo foi parar. Na margem do Rio onde foi jogada há uma placa de metal com seu nome, singela homenagem a uma das mulheres mais extraordinárias da história. Karl, também assassinado, teve seu corpo jogado num dos lagos de Berlim. Seus restos estão desaparecidos. No logradouro do Friedrichshain há um túmulo onde se lê seu nome. E, fato curioso, o túmulo está sempre ornado por flores renovadas. Pode-se dizer: ali jaz o vazio da história, o futuro que não houve, a cicatriz que não desaparece. Vale uma visita.

Flores para o herói

No parque Frederico havia uma estátua monumental, dedicada ao líder comunista e soviético Vladimir Ilitch Ulianov, ou simplesmente Lênin. Foi retirada depois da queda do muro de Berlim e do regime comunista de Berlim Oriental, ao custo de milhares e milhares de qualquer moeda que se possa imaginar. O capitalismo selvagemente triunfante, tal como aparece no filme Adeus, Lênin! (Alemanha, 2003, de Wolfgang Becker), queria apagar a história.

Mas não apagou o singelo cemitério em meio ao parque, talvez por ser pequeno e desapercebido demais. Assim como na cidade de Berlim permanecem os testemunhos das lutas dos trabalhadores por melhores condições de vida, na Alexanderplatz estão as hoje mudas estátuas de Marx e Engels. Fazem frente ao vazio da praça, antes da Segunda Guerra um fervilhante bairro da Berlim opulenta e pobre, magistralmente espelhada no romance Berlim, Alexanderplatz, de Alfred Döblin, filmado por Rainer Werner Fassbinder em forma de série para TV.

Lá do Friedrichshain, tomando-se o bonde 8, vai-se à estação de metrô Zinowitzerstrasse. Descendo-se na estação chega-se à Chausseestrasse, rua onde fica a casa em que morou Bertolt Brecht, um dos mais geniais homens de teatro de todos os tempos, defensor incansável no palco e fora dele da causa dos trabalhadores. A casa, um sobrado simples que pode ser visitado com guias (inclusive em inglês, em horários determinados), hoje é um centro cultural que abriga um simpático restaurante. Fica ao lado de um pequeno cemitério onde Brecht e sua mulher, Helène Weigel, estão enterrados, na companhia de uma intelectualidade ilustre, como o filósofo Fichte e o dramaturgo e diretor Heiner Müller. Ambos, casa e cemitério, valem uma tarde de visita, depois de uma manhã no tocante parque do Frederico.

Ainda no parque o visitante deve reparar que no centro do quadrado há uma pedra retangular bastante sólida. Lá estão escritos os nomes dos enterrados. Na primeira vez em que lá estive, na companhia de minha hoje companheira de vida, observamos um velhinho que passeava. Ele se aproximou de nós e perguntou o que fazíamos, já que, disse ele, quase ninguém mais por ali vinha. “Brasil”, “visita”, eram palavras suficientes para explicar nossa presença. Então ele nos mostrou a pedra central. Nela mostrou um nome solitário, sem sobrenome. Disse que quando puseram a pedra ali, ainda sob o regime comunista, não se sabia o sobrenome do enterrado. Mas depois se soube, e ele, quando vinha com seus alunos (era professor de História), falava o nome inteiro.

Em tom amargurado, disse que agora ninguém mais vinha ali, por isso nossa presença chamara a sua atenção. Perguntamos se ele tinha saudade do regime comunista da Alemanha Oriental. “Não”, disse ele, “era um regime policial que controlava a vida de todo mundo. Eu tenho saudade, isso sim, é dos sonhos que eu tinha”, encerrou a conversa, como quem põe uma lápide sobre um momento da história.

Naquele pequeno recanto do parque, como a rememorar esses sonhos que hoje faltam, as flores não são poucas. Além das perenes do túmulo de Liebknetch, há outras disseminadas por outras lápides, entre as árvores. Mas do lado oposto ao túmulo vazio do líder espartaquista há uma lápide onde se lê: “Ein unberkannter mann”, “Um homem desconhecido”. É uma das vítimas de 1848. Ali as flores são poucas, ou desconhecidas. De modo que convido o visitante que, movido por esta crônica de viagem, lá for a depositar nesse túmulo sem visitas uma coroa de flores, em homenagem a esse anônimo herói que com o custo da própria vida e de sua identidade reafirmou idéias e ideais por que até hoje lutamos.