'Narrar é resistir'

Os meninos contam, e a obra de Guimarães Rosa se espalha

Grupo Miguilim, formado por crianças e jovens de Cordisburgo, terra natal do escritor, completa 20 anos de narrações, revitaliza universo roseano e se revela como projeto social. 'Cria asas e raízes'

Ronaldo Alves

Dôra Guimarães (primeira à esq.) responde pela preparação dos contadores de histórias

Cordisburgo (MG) – O que fazem os Miguilins?, pergunta o geógrafo alemão Dieter Heidemann, que chamam de seu Dito, raízes bem fincadas no Brasil. “Eles não estão declamando, não estão recitando, não estão contando, não estão narrando…”, observa, para emendar que falta nome para muita coisa, conforme escreveu Guimarães Rosa. Os Miguilins formam um grupo que completa 20 anos de atividade em Cordisburgo, minúscula cidade (9 mil habitantes) a 120 quilômetros de Belo Horizonte e terra natal do escritor, cuja morte completará 50 anos em novembro. São jovens que contam (recitam?, narram?) textos roseanos, um projeto que revitaliza a obra e se revela como projeto social.

Com o lema “Narrar é resistir”, o grupo – patrimônio imaterial da cidade desde 2011 – foi homenageado durante a 29ª edição da Semana Roseana, realizada entre os últimos dias 10 a 16. O nome vem de um personagem da novela Campo Geral, do livro Manuelzão e Miguilim (1956), escolhido como tema deste ano. Já Manuelzão é inspirado em personagem real, o boiadeiro Manuel Nardy, que morreu também há 20 anos.

O diretor do Museu Casa Guimarães Rosa, Ronaldo Alves, não tem dúvida em afirmar que os contadores de história deram impulso ao local, inaugurado em 1974 e que chegou a fechar para reforma entre 1994 e 1995. “Isso vai significar a inserção da comunidade. Você tem a oportunidade de ouvir a obra do escritor da voz de moradores. É o que dá alma, é a vida do museu”, diz. Neste mês, foi atingida a marca de 500 mil visitantes. Da inauguração até junho, segundo Ronaldo, foram exatos 499.839 – a média atual fica entre 30 mil e 33 mil por ano.

Também professor de História, além de artista plástico, Ronaldo destaca um projeto de educação patrimonial desenvolvido na região. “A gente leva o museu, a obra, as histórias para esses lugares, para as salas de aula. Esse nosso trabalho é mesmo de resistência.”

A história começa em 1995, quando a médica Calina Guimarães, prima do escritor, aposentada, havia retornado a Cordisburgo e pensava em formas de incrementar o museu. Já reunia jovens para prepará-los como guias. Na capital mineira, ela conhece o trabalho de Dôra Guimarães e Elisa Almeida, que faziam um espetáculo de narração de histórias, incluindo Rosa. Surgia a ideia de preparar os meninos e meninas para, mais do que guias, serem verdadeiros contadores.

Até hoje, Dôra e Elisa respondem pela preparação dos contadores de histórias, depois do afastamento de Calina, por questões de saúde. O Grupo Miguilim está na oitava geração – incluindo a atual, são aproximadamente 160 jovens. Desde 2003, elas contam com uma pedagoga, Lúcia Goulart, para fazer a seleção. Quem coordena o trabalho é Fábio Barbosa, Miguilim formado na primeira turma e funcionário do museu. Com dificuldades de ordem financeira, o grupo segue em frente.

“O sertão dentro de si”

Naquele mesmo 1995, um grupo de estudantes da Universidade de São Paulo (USP) sai em caravana para o sertão mineiro. A cineasta Marily da Cunha Bezerra, companheira de Dieter, autora do documentário Rio de Janeiro, Minas (1993), estava na turma que viajou e, de certa forma, nunca mais saiu de lá. Em texto publicado em 2006 – ano em que ela morreu –, os dois refletem sobre o interesse despertado por locais como Cordisburgo, Morro da Garça, Andrequicé, Curvelo.

O que acontece nesses lugares que atraem cada vez mais pessoas de fora? Certamente são forasteiros que têm o sertão dentro de si, que são sertanejos como Guimarães Rosa definiu para o entrevistador Günter Lorenz. É gente que tem saudade do que nunca viveu e uma sede de um mundo primordial não corrompido, onde ainda há o que fazer.

Para Dieter, a narração pode ser vista como “uma espécie de resistência a essa invasão de imagens que estamos vivendo”. Ele destaca a preocupação de Calina ao montar o grupo. “Ela pensava não só no museu, mas na formação dos jovens. Faz as crianças não gostarem apenas da literatura de Guimarães Rosa, mas gostar de Cordisburgo, enraizar-se, sem deixar de sonhar com o mundo.” Em outras palavras, ele resume: criar asas e raízes ao mesmo tempo. 

Marily começava a sonhar com o mundo quando, ainda nos tempos de colégio, nos anos 1950, participou de uma excursão justamente para Minas. Dieter lembra da aventura no ônibus, conforme relato que sua companheira fazia: “Marily lendo Corpo de Baile, Celso Lafer lendo Sartre e Jorge Mautner fazendo bagunça”. 

Além do curta Rio de Janeiro, Minas, ela também produziu um CD, Sete Episódios, com gravações de Antonio Candido – cantando, inclusive –, José Mindlin e Davi Arrigucci. O trabalho está inédito até hoje, por questões de direito autoral.

O grupo, o museu e o universo roseano contam com um rede de apoios e afetos que ultrapassa fronteiras e tem em São Paulo um de seus redutos. No Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, são realizadas reuniões periódicas para ler obras e falar sobre a arte da região. 

Professora de Literatura e pesquisadora, Beth Ziani fundou em 2001 o grupo Teia de Aranha, que reúne bordadeiras, e criou o projeto Memória Viva do Sertão, de registro da cultura a partir de falas de antigos moradores. Ela enaltece as possibilidades de desdobramentos, “dobras”, a partir da audição dos textos, como pintura e bordados. “Neste momento tão difícil do Brasil, acho que a gente tem aqui uma sementinha com a força de todos. Narrar é resistir, bordar é resistir, a arte é resistência.”

“Quando faço uma avaliação desses anos todos, eu percebo que aprendi mais do que dei”, disse uma comovida Dôra, sobrinha de Calina e professora aposentada de Português, durante uma mesa de conversa sobre as origens e as perspectivas do grupo. Fábio também fala com emoção, ao recordar os primeiros passos dos Miguilins, cuja turma inicial foi recrutada quase toda em uma mesma sala, no ginásio. “Ela (Calina) começou a nos transformar, sem a gente sentir ou perceber. Não queria reconhecimento, queria mostrar para nós que era possível alcançar outros patamares, ser cordiburguenses, não cordiburguistas“, define.

No início, conta, uma das dificuldades era o descrédito, inclusive dos moradores. “Mas como ela (Calina) era aperfeiçoada de valente, ela pôs pra funcionar. O Grupo Miguilim é um multiplicador cultural, devia estar em cada cantinho do Brasil para mostrar que existem outras possibilidades”, diz Fábio, que ainda narra histórias, agora no grupo Caminhos do Sertão, que promove andanças literárias pela região. Como ele lembra, para a pioneira, “contar histórias era só uma desculpa para se achar no mundo”. 

Na penúltima noite da Semana Roseana, Miguilins de todas as gerações se encontraram para recordar e contar. Alguns da atual turma estavam se despedindo. Estão espalhados pelo mundo. E o mundo, na verdade, é o lugar, assim como o sertão está em toda parte.