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Viagem ambiental e antropológica é homenagem ao povo Tikuna e à Amazônia

Além das belas paisagens da floresta, fotógrafa Márcia Rebello registrou os hábitos e costumes dos Tikuna, e o contato 'mágico' com as crianças indígenas, em obra publicado postumamente

Reprodução/Márcia Rebello

Ewaré: em busca da terra sagrada dos Tikunas, fotógrafa tinha especial atração pelos tons de verde da Floresta Amazônica

“Os bebês indígenas estão sempre com as mães, que os levam para todo lado em um pano amarrado ao corpo. Elas fazem tudo com o bebê, para ele poder mamar a hora que quiser — podem ficar amarrados na avó, que também amamenta. O respeito pela criança é infinito, elas fazem o que querem e nunca são repreendidas. Garotos de quatro ou cinco anos de idade pegam a canoa e saem remando e treinando pegar peixe com uma lança. Eles atiram a lança meio em curva e acertam.”

Esse é um dos trechos do livro Ewaré Terra Sagrada, da fotógrafa Márcia Rebello, que, em imagens e texto, na forma de um diário de viagem, registrou expedição realizada, em 1996, às terras indígenas do povo Tikuna, que vivem na região do chamado Trapézio Amazônico, nas margens dos rios que cortam a região de fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru. Eles formam a maior população indígena que habita a Amazônia, com mais de 50 mil pessoas, nos três países.

Reprodução/Welter ArduiniMárcia Rebello
A fotógrafa Márcia Rebello

 O livro, “uma viagem ambiental e antropológica”, lançado postumamente, nesta semana, pelos filhos Aiuri Rebello e Flora Rebello, e pelo marido da fotógrafa, Welter Arduini, é uma “homenagem” ao povo Tikuna, à exuberância natural da Amazônia, e à própria Márcia, morta em 2013. 

“O projeto ficou adormecido, já estava pronto desde essa época. O que a família fez foi recolher e, junto com um designer, dar uma refrescada no projeto gráfico, com mudanças muito sutis. Foi um infarto, inesperado, aos 64 anos. Quando aconteceu, a gente achou que devia, não só a ela, mas ao povo Tikuna, a divulgação desse projeto”, conta a filha Flora, em entrevista à RBA, responsável por levar adiante a produção do livro.

 “O maior meio de comunicação dos tikunas é o sorriso. Eles riem muito. A vida é dura e são felizes. Aceitam a vida como se apresenta. Parece, percorrendo a aldeia, que existe uma voz de comando organizando as tarefas, mas que você nunca ouve. Não é preciso mandar alguém fazer alguma coisa, cada um sabe sua parte e a hora de executá-la. Todos trabalham por todos.”

Flora conta que a família morou em diversas cidades do país, por conta do trabalho do pai, que atua na área de logística e circulação de jornais, quando, em 1996, chegaram a Manaus. Márcia tinha sido ativista pela liberdade de expressão durante os anos da ditadura, e também nessa época despertado a preocupação com o meio ambiente e os mais vulneráveis, viu a oportunidade de adentrar e retratar a imensidão da Floresta Amazônica. “Ela tinha uma coisa com as cores. Era fascinada pelos tons de verde, e os tons do céu”, lembra a filha da fotógrafa.

“O principal era mostrar como essas pessoas viviam. Um Brasil completamente desconhecido para o restante do país, mostrar a simplicidade e a humanidade dos índios, de um jeito muito simples, amoroso e artístico”, explica Flora. 

REPRODUÇÃO/MÁRCIA REBELLOcrianças Tikuna
O contato da fotógrafa com as crianças Tikuna é um dos pontos altos do livro

Além da vastidão da floresta, impressionou Márcia Rebello o contato “mágico” com as crianças das tribos Tikuna. “Ela ligava e contava ‘filha, conheci criancinhas da sua idade, que são que nem você'”, lembra Flora. Eles resolveram, então, incluir os desenhos produzidos pelas crianças a bordo do barco da expedição, um das cenas marcantes, para a fotógrafa.

desenho

“Queria que alguém estivesse me fotografando com as crianças. (…) Estamos todos no barco e as crianças também. Eu estava escrevendo e elas me olhando. Resolvi fazer um desenho e ofereci a caneta para Maria. Todas desenharam.

Hoje pela manhã fui à escola tentar identificar alguns desenhos das crianças. Pedi ao professor Laio que falasse para as crianças que elas estariam para sempre no meu coração, e que eu tinha ficado muito feliz delas terem me acompanhado todos aqueles dias. Chorei.”

Além dos desenhos, a edição do livro inclui o mapa do 1.200 quilômetros percorrido por Márcia Rebello através dos Rio Solimões e Igarapé São Gerônimo, com destino a aldeia Vendaval, na Terra Ewaré da Nação Tikuna, na companhia de dois antropólogos holandeses, que realizavam estudos com os Tikuna. Foram mais de 2.500 cliques, em 50 rolos de filme, e as fotos, feitas com câmera analógica, não passaram por tratamento digital. 

Os Tikuna habitam a região desde tempos imemoriáveis. Foram contactados pelos jesuítas ainda no século 17, quando sofreram com o aculturamento. Na virada do século 19 para o 20, entraram em violentos confrontos com os seringalistas. Durante a década de 1980, voltaram a ser assediados por religiosos protestantes vindos da Coreia do Sul. 

Reprodução/Marcelo BoldriniFlora Rebello
Flora Rebello, filha da fotógrafa

Flora afirma que o avanço do desmatamento na Floresta Amazônica, que coloca novamente em risco o estilo de vida dos povos indígenas, também foi um dos imperativos para lançar o livro agora. “Com o passar dos anos, essa pauta de preservação foi ficando cada vez mais latente e, com ela, a necessidade de mostrar o livro.”

Depois do lançamento em São Paulo, o livro será divulgado também no Rio de Janeiro e em outras capitais. Flora pretende, ainda, lançá-lo também em Manaus, possivelmente com a presença de alguns dos personagens do livro, como o capitão do barco, e o pajé da aldeia Vendaval, com quem a fotógrafa travou contato. Ela cultiva o sonho de refazer a rota realizada pela mãe, há mais de 20 anos, em especial para demonstrar a devastação ocorrida durante esse tempo. 

O livro, que já caminha para a segunda edição, pode ser encomendado através da página Ewaré Terra Sagrada no Facebook. 

 

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