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Passos para a liberdade

Mulheres do campo conquistam por meio de atividades econômicas a auto-estima necessária para uma luta mais ampla pela igualdade

arquivo pessoal

Mulheres da região de Feira de Santana, na Bahia, uniram-se na produção de artesanato e alimentos

Em sete municípios na região de Feira de Santana (BA), grupos de mulheres gerem a produção de alimentos (bolos com frutas tropicais, geléias) e de artesanato. E apostam também na reciclagem. “A gente trabalha com o reaproveitamento da natureza”, conta a coordenadora da Rede de Produtores da Bahia, Neide Alves dos Santos Silva. “Casca de ovos, sementes, areia, pedra. Nem pó de café a gente perde. Em nossos quadros, com casca de ovos ou de madeira a gente faz uma favela. Com pó de cupim, a montanha atrás da favelinha.”

A sabedoria das mulheres do campo e das periferias tem conseguido uma aliada de peso na luta pela igualdade de gênero: a economia. Por meio da produção, em conjunto, elas afirmam a auto-estima e vão aos poucos movendo montanhas históricas do machismo. “As mulheres precisam estar em alguma coisa para se fortalecer”, avalia Neide. “Vou aos municípios e vejo a mulher deprimida, e aí vejo na Rede a mulher mudando, sinto o peso da nossa responsabilidade.”

Para Verônica Ferreira, do SOS Corpo, organização não-governamental no Recife dedicada a questões de gênero, as mulheres precisam fazer mudar a cultura e um dos caminhos para isso é conquistar autonomia econômica: “Fala-se só do comportamento, dos valores, das relações de gênero, mas a administração do dinheiro é um dos pontos centrais na definição do poder”.

“Antes as mulheres eram só para cozinhar”, afirma Jussara Dantas de Souza, da Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá, no sertão baiano. Hoje o faturamento anual de 800 mil reais com a produção de umbu deve-se principalmente ao trabalho de mulheres, 70% do total de trabalhadores. “Foram elas que começaram o beneficiamento”, lembra Jussara. “Depois que os homens vieram chegando.”
Segundo Jussara, o hábito das mulheres do sertão de ficar em casa vem sendo alterado nos últimos anos. “Mudou um pouco a cabeça das mulheres”, diz a gerente da cooperativa. “Elas têm a visão de que precisam sair para vender. Antes era difícil elas saírem até para participar de uma reunião – os maridos não deixavam.” E agora, deixam? “Os maridos também mudaram seus conceitos.”

A caminhada para a igualdade, porém, é dura. O SOS Corpo fez uma pesquisa sobre agricultura familiar e constatou que as mulheres cumprem, no mês, uma jornada de trabalho 20 horas superior à dos homens. “Na área urbana elas têm dupla jornada; na agricultura familiar, é jornada contínua”, define Verônica Ferreira. “Ainda não é reconhecido o valor social nem econômico desse trabalho em casa.”

Até pouco tempo atrás, segundo Verônica, elas não conseguiam nem a titularidade de terras, no caso de desapropriações para fim de reforma agrária. Isso tem mudado. “Existe também uma linha do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf Mulher), com aumento de recursos.” São conquistas significativas: “Antes se tinha a idéia de que, beneficiando os homens, todos seriam beneficiados. Mas elas ainda não têm, na maioria das vezes, a possibilidade de lidar com dinheiro, usufruir o lucro produzido pelo pequeno negócio. Quem faz as negociações ainda é um corpo eminentemente masculino”.

Verônica observa que nem sempre as mulheres estão casadas. “Algumas têm o próprio negócio e precisam ser valorizadas”, diz. Segundo ela, a participação em atividades econômicas é importante para a afirmação feminina e tem ajudado a quebrar algumas estruturas. “Mas a questão da administração do dinheiro é um dos pontos centrais desse poder masculino muito forte sobre as mulheres.”

Na Região Sul, berço das organizações de camponesas, a luta das mulheres tem contornos trabalhistas mais definidos e passa também pelo desenvolvimento do empreendedorismo. Entre os 40 produtores de ervas aromáticas na região de Medianeira, no oeste do Paraná, que bifurcaram também para a agricultura orgânica, as mulheres são maioria. Produzem ervas medicinais para fitoterapia, chás e infusões, além de temperos. “Contamos com a participação dos maridos, mas a atividade nasceu da organização das mulheres”, atesta Teolide Turcatel, coordenadora dos produtores. Segundo ela, a mulher sempre teve esse papel nas atividades econômicas, só que ele não aparecia. No ambiente paranaense, sindicalização e direitos trabalhistas são mais comuns que no Nordeste.

De acordo com Teolide, a entrada das mulheres em associações com fins econômicos influencia diretamente na tomada de consciência em relação aos seus direitos. “Elas começam a se envolver, e esse é um dos nossos objetivos, envolvê-las na política, formar lideranças. E a camponesa é menos escrava do relógio que a mulher urbana. Chamou para reunião, ela vem. A madame não participa, tem seus clubes, e a trabalhadora urbana tem a vida mais sofrida.”

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Construir todo dia

A catarinense Noemi Cresta, uma das líderes do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), diz que um dos principais desafios da organização é mostrar a elas o quanto vale “cuidar da casa, preparar alimentos, cuidar das crianças”. A entrada no movimento mudou a vida de Noemi, que em sua terra produz milho, arroz, feijão, mandioca e batata para subsistência, além de um pouco para vender. “Você busca conscientização não só em si mesma, mas nas outras pessoas. Participa nas decisões do que se vende, como se vende, onde vai ser aplicado o dinheiro.”

Noemi lembra que se trata de uma história de séculos de opressão. “Pelo tempo que se levou para construir o patriarcalismo e o machismo, a gente não vai desconstruir isso em poucos dias”, calcula. A ativista define sua trajetória como a de uma rebelde. “Via a minha mãe, a história dela, meu pai pegar o dinheiro e ela não saber no que ele ia gastar”, conta. Quando organizou a própria família, combinou com o marido construir uma história juntos, com recursos e sua administração compartilhados. A agricultora considera que a emancipação feminina é processo. “A gente tem de construir todo dia. Cada caso é um caso, e cada mulher tem seu tempo de avançar.”

E avançar significa muitas vezes dar um passo para trás, para dar dois à frente. Neide dos Santos Silva conta que o grupo na região de Feira de Santana já teve 170 mulheres. “Acontece de elas saírem e depois voltarem, pela questão financeira. Na seca, elas não conseguem produzir nada na região sisaleira, e aí elas vêm no fim do ano produzir as bolsas de sisal. Quando chove, vão plantar.”

A Rede de Produtores e Processadores de Fruta está em 13 municípios. Neide defende a valorização não só do comércio familiar agrícola, mas do artesanato. Quer estímulos à distribuição, ao escoamento – hoje muito dependente de feiras organizadas pelos governos. “A gente está tentando montar uma cooperativa, mas não tem como escoar a produção. Aí acontece a evasão de mulheres. Em Alagoinhas, parte é da periferia, parte da zona rural. Sem renda, elas vão colher castanhas ou procurar casa de família para trabalhar.” Ou seja, a arte e o protagonismo econômico libertam, mas a sociedade e o “mercado” precisam ajudar. “No meu município ninguém quer comprar, em Salvador também não. Através de um padre, consegui recentemente mandar algumas coisas para a Alemanha.”

Na realidade de Neide, a das montanhas de pó de cupim por trás das favelas de cascas de ovos, a questão mais premente não é ser feminista, mas ter trabalho para a mulher marginalizada. Professora de artes, ela já recusou trabalhos fixos para poder continuar mobilizando as mulheres, que considera a sua missão: “Só vou sossegar no dia em que mostrar para a minha cidade que é possível trabalhar em união. Só vou estar realizada quando parte das mulheres estiver trabalhando, se sustentando e com uma auto-estima legal”.