As mulheres do Sri Lanka
Ela parecia menor do que era de fato. Em meio ao grupo de quatro mulheres com roupas do sudeste da Ásia ou da Índia, ela foi a que primeiro chamou minha atenção
Publicado 04/04/2013 - 12h21
Extermínio de pobres – Rajeswary (vestida de verde) foi “convencida” a fazer a esterilização
Eu estava no Conjunto Esportivo Moi, no bairro de Kazarani, em Nairóbi, cobrindo o sétimo Fórum Social Mundial para a Carta Maior, com o cinegrafista Marcelo Theilicke. As quatro mulheres, com a magrinha no meio, vinham em silêncio. Perguntei de onde eram, procurando ler também os crachás de identificação. “Sri Lanka”, foi a resposta. “Sri Lanka?”, pensei, vasculhando a memória. Algo me veio, e na frente Os Lusíadas, de Camões: “As armas e os barões assinalados/ Que da Ocidental praia lusitana/ Por mares nunca dantes navegados/ Passaram inda além da Taprobana/ e etc.”, se há etc. em poema. Taprobana: uma ilha, enorme, ao sudeste da Índia, antigamente conhecida como Ceilão.
Perguntei o que elas estavam trazendo para o Fórum, e uma delas me respondeu, em inglês: “A luta contra a esterilização forçada de mulheres no Sri Lanka”. Eu quis saber se havia uma política oficial a esse respeito no Sri Lanka. A mesma mulher respondeu que sim, e que esse problema atingia sobretudo o povo da “hill country”, literalmente, o povo camponês das terras altas. E ela explicou, mostrando a mulher magra da etnia tâmil, Rajeswary, uma das vítimas dessa política. Perguntei então como isso era feito, se havia uma política de força ou uma indução. Resposta: elas são subornadas. Quis saber de Rajeswary por que aceitou fazer a esterilização. A resposta: “Ela foi convencida porque já tinha quatro filhos” e… “money”.
O que as mulheres estavam denunciando faz parte de um quadro dramático em escala mundial, que também atingiu o sexo masculino, através de políticas de “eugenia social”, na maior parte das vezes sobre populações pobres e minorias. Houve casos dramáticos entre os ciganos na Europa. No Peru de Fujimori, 200 mil mulheres indígenas foram esterilizadas.
A esterilização obrigatória mesmo contra a vontade do ou da paciente foi instituída pela primeira vez nos Estados Unidos. Os estados de Indiana, Califórnia e Washington adotaram a medida para “retardados” e “doentes mentais”. No regime nazista, 200 tribunais levaram à esterilização 400 mil homens e mulheres. Também houve registros dessas políticas nos países escandinavos, na China, Índia e Austrália.
Em relação às mulheres, existe uma técnica difundida de abordagem, que é a da culpabilização pela manutenção da prole já existente. Esteriliza-se por comida, roupa ou dinheiro, acenando para a incapacidade de manter uma vida digna para os que já existem. Foi este o caso de Rajeswary, que declarou ter-se convencido da conveniência da medida porque ela “já tinha quatro filhos”. Há também seqüelas nesses casos de esterilização forçada ou induzida, pois o processo se torna irreversível, e muitas vezes as intervenções são feitas em condições precárias de higiene – e os “interventores” não se responsabilizam pelas conseqüências. Fiquei admirado pela força daquelas mulheres, pelo testemunho de Rajeswary, pela sua coragem de se expor. Ela era mesmo maior do que parecia.
Grande ilha
O Sri Lanka abriga pouco mais de 20 milhões de habitantes. Foi ocupado e colonizado por portugueses, no século 16. Holandeses chegaram no século 17 e ingleses, no 18. Os ingleses foram os que perduraram na ocupação. Dividiam para reinar, favorecendo em diferentes momentos diferentes etnias. A maioria da população é formada pelos sinhalas (antigos cingaleses), budistas. Cerca de 20% são tâmeis, hindus. A independência chegou em 1948, e com ela uma perseguição aos tâmeis, acusados de favorecimento durante o período colonial. O ambiente de guerra civil vivido desde o final do século 20 já matou mais de 65 mil pessoas. Uma espécie de armistício se estabeleceu a partir de 2002, ainda precário. Muitos dos tâmeis vivem nas montanhas, e são na verdade camponeses pobres.