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A fé que move Roma

O Brasil prepara-se para a visita do papa, que quer uma Igreja Católica latino-americana mais alinhada com o Vaticano do que com os movimentos sociais

Kai Pfaffenbach/REUTERS

Depois de George W. Bush, o Brasil prepara-se para receber outro líder mundial. Na pauta não estarão assuntos econômicos ou políticos. O papa Bento XVI vem ao Brasil, de 9 a 14 de maio, para tratar (do negócio) da fé dos latino-americanos. De reuniões com jovens a grandes eventos de massa, como a canonização do primeiro santo nascido no país, frei Galvão, a agenda inclui a abertura da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Em Aparecida, no interior paulista, o encontro reunirá bispos de toda a América do Sul e do Caribe, do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam).

Bento XVI é o segundo papa a pisar em solo brasileiro. Antes dele, apenas João Paulo II esteve, por quatro vezes, no país. Esta será a sexta viagem apostólica do papa, desde que assumiu o Vaticano, em 2005. O Brasil é o primeiro a ser visitado nas Américas.

Na América Latina está quase metade do 1,1 bilhão de católicos do mundo. Na geopolítica da fé cristã, o Brasil é um país estratégico: 125 milhões de brasileiros se declaram católicos, 74% da população, o que faz do país a maior nação católica do mundo. O catolicismo, que já foi uma unanimidade nacional, perde fiéis desde os anos 90 e assiste assombrado ao crescimento das igrejas evangélicas. A visita de um papa é sempre um evento vultoso, reúne milhões e pode ajudar a recuperar fiéis. Para o teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Fernando Altemeyer Júnior, essa reação não é automática, mas pode influenciar sobretudo aqueles que estão em dúvida. “Alguém que só foi visitar a outra igreja, viu que a bispa está presa nos Estados Unidos, pensa: ‘Vou voltar pra minha igreja e rezar o terço com o papa em Aparecida’”, acredita.

boffExpoente da Teologia da Libertação, o teólogo Leonardo Boff reforça que o papa vem garantir a hegemonia católica no Brasil e na América Latina, mostrando a imagem de uma Igreja “coesa” e “firme na doutrina” ditada por Roma. Os últimos documentos publicados por Bento XVI demonstram como o Vaticano persegue os que se desviam de sua doutrina. Na exortação apostólica Sacramentum Caritatis, divulgada em março, o papa condena o divórcio e o segundo casamento, a união gay, o aborto e recomenda a volta do latim às missas. Também no mês passado, a Santa Sé voltou a notificar um teólogo da libertação por não seguir à risca a doutrina católica. O padre salvadorenho Jon Sobrino foi advertido por “diminuir o valor (…) da divindade de Jesus Cristo” ao ressaltar seu caráter histórico.

A punição não foi tão rigorosa quanto a recebida por Leonardo Boff, em 1985 – condenado a um silêncio obsequioso pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, então presidida pelo cardeal Joseph Ratzinger, o atual papa –, mas demonstra que a Teologia da Libertação ainda incomoda a Santa Sé. Boff afirma que essa estratégia de Bento XVI para segurar os fiéis é um “fenomenal equívoco” por não permitir que os católicos sintam a Igreja como seu lar espiritual e, dessa forma, incentivar que procurem outros nichos religiosos. “Jesus jamais faria o que esses setores fossilizados da Igreja estão fazendo com sua herança libertária”, assevera.

Igreja rebelde

Vaticanistas apontam um claro significado político na punição a Sobrino, principalmente por ter sido anunciada dois meses antes da visita do papa ao Brasil. Foi o próprio Bento XVI quem decidiu que a 5ª Conferência do Celam seria em Aparecida, depois de grande incerteza se o encontro voltaria a se realizar e onde.

Esse evento sucederá uma série de grandes conferências que marcaram a jornada da Igreja no continente e a distanciaram da teologia de Roma. Sobretudo Medellín (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979) foram responsáveis pelo rosto da Igreja na América Latina, marcado pelo compromisso com “esse mundo de baixo”, como explica o bispo emérito de Goiás e ex-presidente da Comissão Pastoral da Terra, dom Tomás Balduino: “Após Medellín, o pobre tomou um lugar de sujeito histórico, o que deu uma identidade própria para a Igreja na América Latina. O mundo daqui é diferente do mundo europeu”. Nos anos 70 e 80, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com sua filosofia de opção preferencial pelos pobres e ação política, alastraram-se por toda a América Latina, questionando sobretudo as ditaduras instaladas na região.

Grande expectativa aguarda a 5ª Conferência. Especula-se que Bento XVI tentará enquadrar a rebelde Igreja Católica na América Latina ao modo de Roma, voltada mais para questões espirituais que para temas sociais. “O papa deverá insistir na tecla da evangelização intra-igreja, da formação do cristão. Mais na linha da piedade, que é do gosto dos movimentos como o carismático”, prognostica dom Tomás.

Para o bispo, não há necessidade de uma intervenção para que aqui se siga a linha do Vaticano, uma vez que mudanças no episcopado, ao longo dos dois últimos pontificados, o tornaram mais conservador. “Não temos mais um dom Paulo (Arns), um dom Hélder (Câmara)”, lamenta.

A sucessão na Arquidiocese de São Paulo, para a qual foi nomeado o atual secretário-geral da CNBB, dom Odilo Scherer, alinhado a Roma, é um exemplo. O novo arcebispo substituiu o car-deal dom Cláudio Hummes, que deixou o governo da Igreja em São Paulo para ficar mais próximo ao papa, na Congregação para o Clero, no Vaticano.

mauricio moraisDona Maria e suas colegas
Dona Maria e suas colegas do movimento Caminho Neocatecumenal estão felizes com a vinda de Bento XVI: “A palavra do papa vai trazer esperança”, acredita. Ela vai acolher em sua casa peregrinos que virão de Brasília

Perto e longe

A nomeação de dom Odilo ocorreu entre os eventos de preparação da Igreja para receber o papa. O Mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo, onde ficará hospedado, foi reformado, assim como o Santuário Nacional de Aparecida. Palcos especiais serão construídos para as celebrações, vestimentas foram encomendadas. Mas não é só em relação à infra-estrutura que o país se prepara para a chegada de Bento XVI. Os fiéis também se organizam.

Dona Maria Aparecida Aquino, de 73 anos, está ansiosa. Depois de ter visto João Paulo II durante visita ao Rio de Janeiro, agora quer chegar bem perto de Bento XVI, “quem sabe até tocar no papa”. Ela acredita que a presença de Bento XVI vai renovar a fé do povo. “A palavra do papa vai trazer esperança”, afirma. Dona Maria é muito atuante na Igreja e no movimento Caminho Neocatecumenal, surgido na Espanha na década de 60 e reconhecido como apostolado da Igreja em 1990. Ela é catequista, visita doentes e freqüenta grupos de oração. Há 20 anos participa da comunidade Santa Bernadete, no Parque São Lucas, em São Paulo, que se prepara para acolher peregrinos que virão de Brasília. Dona Maria vai abrigar em sua casa um casal de peregrinos.

Nem todas as comunidades católicas estão em efervescência. O casal Sebastiana e Genival de Farias não vai a nenhum evento e nem pensa em enfrentar a multidão para ver o papa de longe. “Se der, vejo pela televisão”, diz Sebastiana. Casados há 35 anos, chegaram a São Paulo na década de 70 e logo descobriram uma Igreja diferente da que freqüentavam em Pernambuco. Conheceram as CEBs, que misturavam religião com política. Por meio delas o casal se envolveu em diversas lutas por melhorias no bairro onde mora, Jardim Ricardo, na zona leste – por luz elétrica, água, posto de saúde, sempre com o apoio da Igreja. “Temos de aprender a olhar para o outro, pensar no excluído, no sem-terra, no favelado. É assim que Deus gosta”, explica Genival.
Se pudesse dizer algo a Bento XVI, Sebastiana pediria a ele que “visse com ternura o Jesus libertador que está nos evangelhos” e apoiasse mais os movimentos que lutam pelas causas do povo.

‘Não tem santo que não seja dos pobres’

mauricio moraiscelia
Irmã Célia: dedicada à canonização

O papa canonizará no dia 11 de maio o primeiro santo nascido no Brasil, em celebração que deve reunir milhões de fiéis no Campo de Marte, em São Paulo. A responsável pelo processo que tornou santo o paulista frei Antônio de Sant’Ana Galvão (1739-1822) foi a religiosa Célia Cadorim, que tem em seu currículo a elevação de madre Paulina, declarada santa em 2002.

Frei Galvão vai ser patrono do quê?
Ele é conhecido como patrono das parturientes e dos problemas de rins. Por isso ele começou a fazer as pílulas. Diante de um caso de dor nos rins de um rapaz, ele parou, rezou e escreveu num papel uma frase do breviário dos padres. Depois enrolou como se fosse uma pílula e o rapaz tomou. Dali a pouco, ele expeliu as pedras. Também há a história de uma mulher que não conseguia dar à luz. Ele fez a mesma coisa e nasceu a criança. Não se sabe quando ele começou a fazer as pílulas, mas acho que foi entre 1785 e 1788. Desde aquela época as pílulas de frei Galvão são procuradas.

Os processos de canonização são muito caros?
Para a beatificação de frei Galvão, a gente gastou em torno de 95 mil dólares. Agora, para a canonização, vamos chegar a algo em torno de 50 mil euros. Quem pagou tudo foi o Mosteiro da Luz, mas tivemos uma ajuda muito boa de um grupo de Guaratinguetá. Eu sempre trabalhei de graça, liberada pela minha congregação.

A Igreja no Brasil tem história de compromisso com as lutas sociais. Quando vamos ter um santo que cuide dessa área?
Não tem santo que não seja dos pobres, que não se preocupasse com os doentes, com o excluído, com o marginalizado. Não dá para amar a Deus se tu não amas os irmãos. Por exemplo, o próprio frei Galvão, que é o protetor das parturientes, dos que sofrem de problemas nos rins, da construção civil.

A senhora está empolgada com a visita do papa?
Estou muito contente. A gente dizia que foi um milagre o papa aceitar fazer a canonização no Brasil. Eles não fazem fora do Vaticano. Em Roma seria no dia 13 de junho, já estava marcado.