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Viver e trabalhar com HIV

Empresas que estimulam o respeito aos funcionários com aids disseminam bons hábitos para a produtividade – como informação, companheirismo e proteção social – e podem ajudar a combater o avanço dessa epidemia

Howard Burditt/REUTERS

Manifestantes sul-africanos pedem mais verbas para prevenção do HIV. Em algumas regiões africanas, a expectativa de vida caiu de 62 para 47 anos devido à aids

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que mais de 38 milhões de pessoas vivem com o HIV em todo o mundo e duas de cada três dessas pessoas possuem emprego fixo. A telefonista Silvia Almeida, 42, é uma delas. Trabalhando há 22 anos na mineradora Anglo American Brasil, descobriu-se soropositiva em 1994, após dez anos de empresa. Na época, nem ela nem o marido, de quem contraiu a doença, imaginavam fazer parte do chamado “grupo de risco”, por serem pessoas casadas. Durante os dois anos seguintes à descoberta, Silvia viveu uma fase difícil: teve de acompanhar a evolução da doença de seu marido até a morte, em 1996, e ainda cuidar do casal de filhos, ambos soronegativos.

A decisão de revelar à empresa sua condição sorológica partiu da telefonista. “Minha vida pessoal estava impactando na empresa devido aos problemas de saúde do meu marido e isso diminuía minha produtividade”, explica Silvia, que contou com o apoio de uma amiga e de diretores da empresa. “Eles agiram de forma solidária e entendiam quando eu precisava faltar por causa dos efeitos colaterais dos medicamentos.” Mas ela evitava faltar. “O HIV precisava ser incorporado à minha realidade de trabalho. E não eu ser incorporada à realidade do HIV. Nunca me permiti ficar em casa deprimida. Preferia trabalhar.”

Atualmente, todos os funcionários sabem que Silvia é uma pessoa que vive com HIV e a empresa transformou a difícil experiência da telefonista em algo positivo. Ela participa de palestras sobre prevenção a DST/HIV/aids promovidas pela Cipa e tornou-se referência no assunto. É comum ver funcionários tirando dúvidas e compartilhando casos pessoais e familiares. “Ensinei para os funcionários o que é ser uma pessoa com HIV. Transmiti tranqüilidade e consegui quebrar a desinformação e o tabu da doença. Quero dividir minha experiência para que as pessoas não sofram o que sofri”, afirma. Para Silvia, a empresa que fecha as portas para as pessoas que vivem com HIV/aids está colaborando para o aumento da infecção e progressão da doença. “Discriminar uma pessoa soropositiva é a mesma coisa que dar um atestado de morte social.”

mauricio moraissilvia
De acordo com a OIT, os investi-mentos externos diretos diminuíram nos países onde a aids levou à redução da expectativa de vida

Ação na Justiça

Não basta a empresa não ter a discriminação como política. Ela precisa disseminar o combate ao preconceito em sua hierarquia para evitar que ele atinja, na ponta, seus funcionários. O hoje comerciário Domingos Ferreira, de 42 anos, é portador do HIV há 22. Ele trabalhou no Unibanco como supervisor de atendimento ao cliente de 1998 a 2003, quando foi demitido um mês depois de informar sua superintendente sobre a sorologia. Na época, entregou uma declaração ao banco pedindo antecipação de suas férias para iniciar uma fase do tratamento chamada “férias do remédio” – período em que ele abandonaria os medicamentos para ver os resultados. Com isso, Domingos estaria mais vulnerável a doenças oportunistas, que aparecem quando o sistema imunológico fica enfraquecido, e não gostaria de estar trabalhando nesse período.

O que Domingos não esperava é que o banco o demitisse, pois era tido como um funcionário exemplar. “Fiquei desesperado e implorei que me mantivessem no banco, mas minha superintendente não aceitou por dizer que eu havia escondido ser portador do HIV e que não se pode esconder um ‘troço’ desses do banco”, explica Domingos, revoltado. Segundo ele, a superintendente alegou, para o banco, motivo operacional para demiti-lo.

O portador procurou seu sindicato, que tentou, sem sucesso, negociar sua reintegração. Domingos foi orientado a lutar por seus direitos trabalhistas, mas teve medo de ter a vida superexposta, uma vez que o caso no banco se espalhou pelos departamentos. Apesar de deprimido, um mês após a demissão ele conseguiu um novo emprego, no qual está até hoje, por indicação de um ex-colega. “Na atual empresa todos sabem da minha doença, e não sofro nenhum preconceito.” No mesmo ano ele optou por procurar um advogado para entrar com uma ação contra o banco. O processo ainda está em andamento. “Não quero indenização, e sim meu direito de trabalhar. Quero ganhar para mostrar ao banco que ele não tinha o direito de fazer o que fez comigo”, afirma.

A advogada trabalhista Elídia Tridapalli, autora do livro Aids e seus Impactos nas Relações de Trabalho, explica que a desinformação é a principal causa dos constrangimentos que ocorrem nos ambientes de trabalho e, em alguns casos, leva à demissão imotivada. Ela indica alguns caminhos a tomar quando o preconceito está na origem da demissão. O primeiro deles é a pessoa procurar seu sindicato ou advogado para relatar o ocorrido; outro é guardar todo tipo de prova, como rescisão de contrato, nomes de testemunhas, bilhetes, recados etc. É importante manter a privacidade e não divulgar a condição sorológica para muitas pessoas.

Com apoio da entidade ou advogado, o funcionário deve buscar o diálogo com a empresa visando à revogação da demissão. Caso não haja acordo, pode entrar com ação na Justiça do Trabalho e pleitear a reintegração por meio de liminar até que o processo seja julgado. De acordo com Elídia, a maioria das decisões do Tribunal Regional do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho tem sido favorável às pessoas que vivem com HIV/aids e foram discriminadas no local de trabalho.

rodrigo queirozlicinha
Lucinha Araújo e seus “filhos”: busca de parcerias para cursos profissionalizantes já com olhos no difícil mercado de trabalho

Olhar para o futuro

A epidemia do HIV/aids atinge de forma decisiva a estrutura social, econômica e cultural dos paí-ses. Estudo da OIT estima que de seu início, nos anos 80, até o ano passado 28 milhões de trabalhadores em todo o mundo perderam a vida em conseqüência da doença. Esse número pode chegar a 74 milhões nos próximos dez anos, caso o acesso ao tratamento adequado não seja ampliado – o que transformaria o HIV/aids em uma das maiores causas de mortalidade no mundo do trabalho.

De acordo com a OIT, os investimentos externos diretos diminuí-ram nos países onde a aids levou à redução da expectativa de vida. Em algumas regiões africanas, por exemplo, essa expectativa caiu de 62 para 47 anos. Relatório da organização também destaca que cada ano de expectativa de vida recuperado nesses países gera um crescimento de 2% do investimento externo.

Iniciativas como a criação do Conselho Empresarial Nacional de Prevenção ao HIV/Aids (CEN Aids), em 1998, por meio do Ministério da Saúde, evidenciam a necessidade de otimizar esforços e recursos para atingir cada vez mais pessoas e tornar as ações voltadas para o combate à aids mais efetivas. Esse esforço segue indicação do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (Unaids), que estimulou a criação do Conselho Empresarial Mundial de Prevenção ao HIV/Aids, em 1997. “A atuação do CEN Aids, voltada para o setor empresarial, estimulou ações preventivas e a não-discriminação, tendo em vista que com o avanço da medicina as pessoas que vivem com HIV/aids estão, na maioria dos casos, em plena atividade”, afirma o presidente do CEN Aids, Murilo Moreira.

Para Cláudio Monteiro, do Conselho Empresarial de Prevenção ao HIV/Aids do Estado de São Paulo, é importante falar sobre aids nos locais de trabalho, pois é onde os funcionários passam a maior parte do tempo. “O cotidiano deles é a empresa, por isso devemos abordar o assunto como algo natural e disponibilizar insumos de prevenção à doença”, explica Monteiro.

Outra abordagem crescente entre as organizações ligadas a aids e trabalho é a empregabilidade juvenil. Se o desemprego já afeta em dobro a população jovem, entre os soropositivos a preocupação é ainda maior. Lucinha Araújo, fundadora da Sociedade Viva Cazuza, que abriga crianças que vivem com HIV/aids no Rio de Janeiro, conta que após a perda de seu filho, em 1990, aos 32 anos, ela ganhou outros 20.

As crianças são criadas desde pequenas dentro dos muros da casa e Lucinha já começa a repensar se essa forma de intervenção – e o excesso de “proteção” – não os afasta do enfrentamento dos preconceitos. “Alguns começam a chegar àquela fase da vida em que querem viabilizar sonhos e anseios, entre eles ter uma profissão para ajudar a família. E a vida em sociedade é o melhor aprendizado”, acredita.

Se antes priorizava a formação de parcerias e apoios privados para encaminhar seus “filhos” à universidade, Lucinha já começa a reposicionar seus objetivos. Em vez de universidades, as parcerias buscadas agora visam proporcionar o acesso a cursos profissionalizantes, como os do Sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Senac etc.), que possam intermediar o ingresso no primeiro emprego.

De acordo com a OIT, o local de trabalho pode ajudar na promoção dos direitos humanos, disseminar informações, desenvolver programas de capacitação, educação e adoção de medidas preventivas práticas, além de proporcionar oferta de assistência, apoio, tratamento e garantia de previdência social.

De acordo com a psicóloga Narda Tebert, uma das organizadoras do Encontro Nacional de Jovens Vivendo com HIV/Aids, realizado em outubro no Rio de Janeiro, os adolescentes soropositivos são o futuro do movimento social de luta contra essa epidemia no país, inclusive no mundo do trabalho. “Eles são as melhores pessoas para dizer como a prevenção pode funcionar.”