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Ritmo, Poesia e Periferia

Não espere o futuro mudar sua vida / Porque o futuro será a conseqüência do presente / Parasita hoje / Um coitado amanhã / Corrida hoje / Vitória amanhã / Nunca esqueça disso (A Vida é Desafio, Racionais MC’s)

gerardo lazzari

Negredo: cursos, biblioteca e festas para a comunidade da Favela do Godoy

Boa parte dos 13 milhões de brasileiros habitantes de favelas convive com o estigma da invisibilidade social. Mas é também lá, no coração da favela, que a onda de hip-hop responde a essa invisibilidade com uma injeção de valor na auto-estima. O orgulho de ser da periferia é um dos frutos desse movimento cultural, identificado com a vida em comunidade e o que ela tem de melhor. Quem vê nos guetos apenas celeiros de bandidos e aspirantes a jogador de futebol é bom se preparar para rever conceitos. Em breve, as periferias serão os principais pólos culturais das cidades, formadores de escritores, poetas, músicos, pintores, dançarinos, enfim, uma nova safra de artistas.

Para o escritor e rapper Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, se o marasmo leva às drogas, o hip-hop leva à realização. “Para ser DJ, precisa treinar; para fazer um rap, precisa estudar, ler, escrever”, comenta. Reconhecido por sua literatura “marginal”, Ferréz é um dos principais entusiastas da cultura hip-hop na região onde mora − o Capão Redondo, na zona sul da cidade de São Paulo −, uma das mais críticas do país em relação à violência.

Lá, enquanto a cidade de São Paulo se escondia da guerra entre as “forças de segurança” e organizações criminosas, em maio deste ano, a retaliação policial impunha ares macabros. “A periferia sempre é criminalizada, quando na verdade mais de 99% somos trabalhadores. Os bandidos estão de terno na Avenida Paulista, não de chinelo na favela”, dispara o escritor.

Nesse contexto, o movimento hip-hop exerce papel inestimável. “Nenhum movimento jamais chamou tanto para si essa responsabilidade de criar um orgulho de ser periférico, uma vontade de mudar tudo através da arte.” O orgulho está estampado no rosto das pessoas, e também em camisetas, bonés, calças, chaveiros, adesivos feitos pelos próprios moradores. “A idéia é fazer a pessoa usar a atitude, ter orgulho do lugar onde mora”, defende Ferréz, que criou a marca 1 Da Sul, em 1999.

“É comum ver o pessoal vestindo nossas marcas em outros locais da cidade, como no centro ou nos shoppings. Isso nos deixa muito felizes”, comenta Alexandre Rocha, o DJ Alê, 33 anos. Ele se juntou a outros três amigos e formou o grupo de rap Negredo, que, além de cantar, faz roupas e acessórios com a marca dos músicos. “Mas só vendemos as roupas em nossa loja ou na 1 Da Sul.” A estratégia é estimular as pessoas a gostar da marca Negredo, por exemplo, a ir à periferia, a valorizar mais o local. Todo o processo, do design à venda, é feito pelos próprios moradores das periferias da zona sul da cidade. Somente as marcas 1 Da Sul e Negredo geram trabalho para mais de 70 pessoas.

É da favela? Então, não!

Moradores da Favela do Godoy, na zona sul paulistana, os rapazes do Negredo também fundaram uma ONG, a Associação Periferia Ativa. “Criamos uma biblioteca e queremos promover cursos ligados ao hip-hop. Nossa luta não é para tirar os jovens do tráfico; não queremos nem que eles entrem”, explica o DJ Alê, que vê em seu filho, Israel, de 9 anos, razões de sobra para querer um futuro mais digno para a comunidade.

Para Antonio Lopes dos Santos, o MC Tó, 27 anos, a discriminação acaba levando muitas vezes os jovens a buscar no tráfico uma qualidade de vida melhor. “Quantas vezes já fui procurar emprego e, quando o pessoal via que eu era daqui da Godoy, mudava o rosto e me descartava”, relata o músico do Negredo. A solução, muitas vezes, era mentir. “Falava que morava em Santo Amaro. Assim como eu, muitas pessoas daqui fazem o mesmo.”

Uma vez por ano o Negredo organiza uma festa na favela. Convida artistas como os Racionais MC’s e mobiliza milhares de pessoas – este ano chegou a lançar o primeiro DVD, o 100% Favela. O QG do grupo funciona no antigo bar de Wilson Lopes dos Santos, o Ilsão, 28 anos, outro membro do Negredo. “Fechei o bar porque sentia que não adiantava falar que devemos evitar as drogas e a violênci a e ao mesmo tempo servir bebidas para a comunidade. Decidi montar essa loja”, explica, apontando para o estabelecimento que vende acessórios hip-hop.

Foi também a vontade de mudar a periferia que impeliu os rappers Celso Athayde e Alex Pereira Barbosa, o MV Bill, a criar a Central Única das Favelas (Cufa), em 1998. Expoentes do hip-hop nacional, Celso e MV Bill ganharam notoriedade ao exibir, no programa Fantástico, o documentário Falcão – Meninos do Tráfico. A iniciativa causou mal-estar na sociedade ao escancarar a realidade dos morros e, por outro lado, chamou a atenção para como a interação cultural da rua com a periferia pode ser um elemento de transformação social.

“Tradicionalmente o hip-hop tem o discurso de ser um movimento político, social e cultural. Só que na prática é um pouco diferente. Daí, nós resolvemos transformar o hip-hop no fio condutor das nossas ações, pois sabemos que no momento que os jovens acreditassem na revolução da favela, das periferias, a revolução seria então provável”, explica Athayde.

A Cufa está organizada em nove outros estados e no Distrito Federal. Seus projetos têm como base a cultura da rua para a transformação social. A central responde a processos por apologia ao crime. “Quando um antropólogo fala da vida na favela, tudo bem. Quando um outro acadêmico faz comentários sobre a criminalidade nos morros, não há problema. Mas, quando nós, que moramos na periferia, falamos do que acontece em nosso meio, não pode. A periferia não pode falar, não pode se expor”, queixa-se Celso Athayde.

Entre os cariocas, existem projetos da Cufa na Cidade de Deus, no Complexo do Alemão, Acari, Jardim Nova Era, Madureira e Jacarezinho. Para Celso, mais importantes do que os atendimentos são os trabalhos de conscientização e cidadania. “Não competimos com o tráfico, apesar de muitas vezes tirar jovens do tráfico e perder jovens no tráfico. Nossa luta é para levar informação e oportunidades. As pessoas decidem o que fazer com essas conquistas.” Há retaliações dos traficantes? “O criminoso não quer que seu filho também seja bandido.”

gerardo lazzaricurso dj
Jovens participam do curso de DJ promovido pela Cufa, em parceria com a Escola de Samba Mocidade Alegre, em São Paulo

Dia da Favela

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou, em junho passado, o Dia da Favela, projeto do então vereador Edson Santos (PT), eleito deputado federal em outubro. A data escolhida, 4 de novembro, remete ao ano de 1910, quando foi encaminhada por um chefe de polícia ao então prefeito do Rio de Janeiro uma carta em que relatava que uma comunidade instalada no Morro da Providência era um “problema social, sanitário, policial e até moral” e que deveria ocorrer uma “limpeza” na área.

Os primeiros moradores do Morro da Providência eram ex-combatentes da Guerra de Canudos (1896-1897) que foram para o Rio de Janeiro com a promessa do governo de que ganhariam casas na então capital federal. A promessa não foi cumprida e, sem receber seus soldos, os ex-soldados passaram a ocupar e construir casas na encosta do morro. O nome “favela” tem origem na guerra travada entre tropas republicanas e seguidores de Antônio Conselheiro, no sertão baiano. Favela era o nome de um morro nas proximidades de Canudos onde os soldados republicanos acampavam.

Em São Paulo, a Cufa mantém ações também na zona norte, em parceria com a Escola de Samba Mocidade Alegre, atuando com os moradores da favela Lidiane, na zona noroeste da capital, e na zona sul, com a favela Real Parque e Coliseu. “O hip-hop mostra para o moleque da favela e periferia que, se o sistema não oferece uma condição, ele pode viver por si próprio”, defende Adriano Freitas, 34, coordenador da Cufa em São Paulo e organizador de uma página na internet – Real Hip-Hop – especializada em cultura urbana.

Atuando no movimento cultural há mais de 15 anos, ele já vê resultados. “Um grafiteiro top cobra 10 mil reais para pintar uma parede e expõe seus trabalhos nas galerias de arte. É claro que os moleques que estão começando agora recebem menos, mas já começam a criar oportunidades nos comércios.” Adriano lembra também que os rappers são cada vez mais respeitados por suas músicas e influenciam os outros a estudar para decorar as letras, que às vezes têm mais de dez minutos de duração. “Aos poucos, a garotada percebe que é possível fazer alguma coisa para mudar a realidade em que ela vive.”

Filho do Bronx, bairro pobre de Nova York

Foi na periferia de Nova York (EUA), nos bairros do Bronx, Harlem e Brooklin, que o hip-hop surgiu no final da década de 1960. Em meio às constantes brigas de gangues, grupos de break passaram a trocar a violência por duelos que tinham a linguagem da dança como arma. 

Com a organização de “batalhas” não-violentas entre gangues, começaram a pipocar outras manifestações culturais como os DJs (disc-jokeys) e os grafiteiros. Os MCs (mestres de cerimônia), que animavam as festas, passaram a fazer discursos rimados sobre a comunidade e aspectos do cotidiano.

No Brasil, o hip-hop começou a ganhar espaço nos anos 90. Conquistou seu lugar na periferia e hoje é uma das principais matrizes culturais de movimentos populares e de defesa da cidadania, como a Central Única de Favelas (Cufa).

De 4 a 29 de novembro, a Cufa promove o Hutúz, o maior festival da cultura hip-hop da América Latina. O evento está em sua sétima edição e premiará 14 categorias que se destacaram no cenário da cultura de rua do país. 

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