Crônica

O princípio

Antes de periferia, centro, revólver, rap, polícia, existia a dúvida

mendonça

Meus olhos não se fecham mais, e a terra parece apenas uma bola azul. E, dessa grande distância, você pode pensar que é alguém e que vale alguma coisa, com seus problemas e dificuldades para conquistar o que tanto sonha.

Embora tenha aparecido pela primeira vez há 4 bilhões de anos, no mar.

Uma única célula.

Uma explosão de vida de organismos começou a se multiplicar, hoje vista tanto por uma coisa negativa como positiva.

E depois isso teve fim.

A 440 milhões de anos atrás, a extinção devastou quase todas as espécies no planeta, e você pode se lixar para isso, se quiser. Mas a questão é que, devagar, tudo começou a se reerguer, as plantas, a nascer e desenvolver, depois os insetos, tudo para ser novamente destruído numa segunda extinção, e, embora se sentisse o clima, em nenhum instante a nova vida temeu em ficar de pé.

E isso aconteceu de novo e de novo.

Os répteis saíam do oceano apenas para morrer, mas nem por isso não voltavam a sair do oceano, incansavelmente.
Então os dinossauros andavam pela terra e faziam companhia aos primeiros pássaros, peixes e plantas, nem sempre em harmonia, mas coexistiam.
Pena que todos morreram na quarta e na quinta grande extinção.

Cem mil anos depois apareceu o homem.

O homem evoluiu, evoluiu tanto que não conseguia entender o mundo, então o homem inventou algo para curar a dor e acalmar a dúvida, e isso se chamou fé. Depois, com muita fé, o homem escreveu a Bíblia, se inspirado por Deus ou não, isso não está em pauta. (Na verdade tentar elucidar isso, ou discutir o assunto, já trouxe guerras demais.)

O homem tem sido uma força incansável sobre a Terra, vai entendendo o mundo à medida que ele se revela para ele, e também vai destruindo na mesma proporção, pois tudo que entra em seu corpo também sai.

Ele se ergue, se organiza, constrói, termina e no fim derruba, destrói para novamente construir.

Hoje somos mais de 6 bilhões de pessoas, todos descendentes daquela célula única original, aquela primeira centelha de vida, aquela partícula que começou tudo isso.

E isso se tornou o quebra-cabeça.

E nos esquecemos dessa única partícula.

Nos esquecemos tanto que pisamos em pessoas como em formigas.

A sexta extinção está vindo, é impossível deixar de voltar ao princípio.

Aos olhos nus, parece apenas uma bola azul.

Mas a divisão por raças, continentes, nações, credos, bandeiras, ideologias, bebidas, coleções, vaidades, posturas, ritmos, roupas, cores, deveres, não nos deixa ver além.

Sociedades secretas surgem uma após a outra, uma exterminando a outra.

O homem criou o Estado, e o Estado se reinventou, quando decidiu governar como as empresas.

E hoje o mundo é dirigido como uma grande empresa.

Mas, se somos apenas funcionários, onde estão nossos ganhos, cadê o salário?

Conversamos com máquinas (celulares), nos conhecemos por telas (computadores), trocamos nossos iguais por sonhos (televisores), escutamos narrações, pois não vemos com clareza (rádio), temos de marcar as horas (relógio), para que no fim tudo possa ter um sentido.

E de leve, somente de leve, quando deitamos, sentimos algo parecido com o viver, quando fechamos os olhos, e olhamos pra dentro, sem camadas, sem enfeites, sem posturas e ideologias.

Só assim, numa pequena fração de segundo, nos sentimos totalmente humanos.

Ferréz é escritor, autor de Capão Pecado, Manual Prático do Ódio, Amanhecer Esmeralda, Ninguém É Inocente em São Paulo (todos pela Editora Objetiva)