saúde

Alguma coisa fora da ordem

Fazer compras ou ir a um estádio podem ser tarefas fáceis para qualquer um, mas não para quem tem síndrome do pânico, uma doença que já mexe com a vida de cinco em cada cem habitantes do planeta

paulo pepe

Cristina criou uma personagem, tática que a ajudou a vencer o medo de sair de casa e vender suas bijuterias

Na noite do dia 14 de dezembro de 2000, ao deitar-se, a dona-de-casa Cristina Peixoto sentiu, nos primeiros instantes do sono, o coração acelerado. Transpirava muito. Esforçava-se para respirar, mas não conseguia. Achou que estivesse morrendo. Ela ainda não sabia, mas tinha acabado de ser vítima de uma crise de pânico, causada por um longo período de depressão. O problema era latente, desde o início daquele mesmo ano, quando começou a pior fase de sua vida.

Em março sua mãe ficou doente e, em julho, morreu. Grávida de quatro meses, Cristina perdeu o bebê. Logo depois, o casamento degringolou. Tudo conspirava contra. Seu animal de estimação morreu e, no mesmo dia, ela e seu marido foram seqüestrados na porta de casa. Teve câncer na tireóide. O casamento acabou de vez e em setembro mudou-se, sozinha, para um apartamento. A primeira crise de pânico veio na noite de “estréia” em sua nova residência. “Tudo isso acabou comigo, pois me vi separada, sem minha mãe, sem meu gato, sem trabalho nem profissão. Perdi 17 quilos e fiquei anoréxica. Passei a ter medo de dormir, era a hora das crises.”

A síndrome do pânico, ou transtorno do pânico (TP), não atinge somente pessoas com histórico dramático como o de Cristina. De acordo com o psiquiatra Geraldo Possendoro, pode surgir aparentemente de modo espontâneo, na forma de ataques recorrentes de ansiedade. Os principais sintomas são taquicardia, falta de ar, parestesia (alteração da sensibilidade nas extremidades) e sensação de morte iminente. Também é comum haver a despersonalização (estranheza de si próprio) e a sensação de enlouquecimento. “Não é preciso ter todos os sintomas juntos. Quatro deles já satisfazem o diagnóstico, desde que não sejam gerados por outra doença. Por isso é preciso fazer o diagnóstico diferencial, já que várias patologias podem gerar crises de ansiedade”, alerta Possendoro, especialista em ansiedade e professor do curso de especialização em psicoterapia cognitivo-comportamental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

De 4% a 5% da população mundial tem ou já teve a doença, e o número vem aumentando desde a década de 80, quando foi feita a primeira classificação diagnóstica oficial. A psicoterapeuta clínica Rosana Laiza, presidente da Associação Nacional da Síndrome do Pânico (Ansp), descreve como é sofrer assaltos o dia todo: “É como se você levasse sustos o dia inteiro. Ninguém agüenta porque a adrenalina corre no sangue, o coração dispara e no final do dia você está com dores no corpo inteiro, se sente mal e com medo de ter uma próxima crise”. A associação, com sede em São Paulo, atende portadores da síndrome do pânico, orienta familiares em grupos de auto-ajuda e encaminha pacientes a outros profissionais de saúde.

marcos

Fugindo da sombra

É comum pessoas com pânico desenvolverem comportamentos de segurança, contra situações “ameaçadoras”. Marcos Roberto Soares Varella teve sua primeira crise em 1994, aos 14 anos, depois de ver a avó morrer em seus braços. Passou a ter crises diárias. Suas esquivas o isolaram: não conseguia ir a jogos de futebol, supermercados, evitava elevador e parou de estudar. Seu abrigo mais comum era o quarto dos pais. “Era meu ponto de referência quando as crises aconteciam. Eram 15 minutos contados no relógio”, lembra. Foram seis anos de crises intensas. “Perdi namoradas e cinco empregos.” Corintiano fanático, ele conta que numa final de campeonato entre Corinthians e São Paulo estava com os primos na arquibancada quando, ao se dar conta da multidão que o cercava, saiu correndo do estádio do Morumbi e pediu ajuda a policiais.

A ex-dona-de-casa Cristina Peixoto garante que foi curada não apenas pela medicina, mas também pela arte. Aprendeu a fazer bijuterias com a técnica de crochê em fio de metal e bordado. No início, só queria esconder a cicatriz deixada pela cirurgia na tireóide; depois, a atividade virou fonte de renda. Mas, antes, teve de encarar seu medo de sair de casa. “Achava que era uma fraqueza minha. Comecei a usar o pseudônimo de Sarita Azevedo para vender os acessórios. A Sarita era segura, poderosa e sabia fazer as coisas. As pessoas acreditavam, mas só eu sabia como estava estraçalhada por dentro”, lembra Cristina.Quando teve uma crise na frente de uma amiga, foi incentivada a procurar um médico, que a ajudou com um medicamento neuromodulador. E a produção das peças continuava. “Cada peça simbolizava uma etapa vencida. O descobrimento da arte e da minha capacidade, aliado ao tratamento médico, me tirou do abismo.”

Cristina tornou-se designer de jóias e começou a criar o Grupo Operários da Arte (GOA). Hoje dá qualificação na arte de tecer com metal a 40 pessoas da periferia de São Paulo. “Não tenho mais medo. Deixei a Sarita de lado. Hoje sei controlar meus sentimentos.” Suas jóias ganharam repercussão por intermédio de grifes como TNG e Lucy in the Sky e em revistas como a Vogue Noivas. Do processo de reclusão resultou o livro (ainda não publicado) A Arte de Retecer a Vida.

Os pais o ajudaram a buscar tratamento com psicólogos, psiquiatras e cultos religiosos e constataram: não era exagero nem frescura. Marcos fez terapia durante sete anos e hoje se considera 80% curado, mas ainda tem um tique que lhe rendeu apelido. É chamado de Pisca pelos amigos. “Eu não ligo para o apelido. Gosto de tirar sarro dos outros também, sou animado, e voltei a ir aos jogos do Timão. Agora quero aproveitar a vida, seguir adiante”, diz.

O psiquiatra Geraldo Possendoro afirma que treinar o paciente a respirar adequadamente e a desenvolver técnicas corporais de reagir – o que pode ser aprendido em quatro sessões – já possibilita um razoável controle das crises. “Não há como prever um tempo médio de tratamento, isso varia muito de paciente para paciente. Por volta de 40% ficam bem sem medicação. A grande maioria é tratável e, em 90% dos casos, as pessoas têm retorno a uma excelente qualidade de vida”, afirma.

Rosana Laiza alerta que além da terapia e dos medicamentos é importante a pessoa ter iniciativas de comportamento: ser mais flexível, não ser tão rígida e centralizadora, fazer atividades prazerosas. “É difícil porque geralmente os portadores de transtorno do pânico são workaholics, ansiosos, por isso é importante que tenham total apoio dos familiares”, afirma a psicoterapeuta da Ansp, que já atendeu mais de 10 mil pacientes com pânico, a maioria bancários e advogados.

Pressões sociais e epidemia de pânico

O antropólogo e sociólogo da Universidade de Brasília Antônio Flávio Testa afirma que as chamadas doenças psicossociais têm aumentado muito desde o início dos anos 90. “A depressão ligada ao estresse está levando a uma insatisfação psicológica muito grande e a conseqüência maior disso é a crise do pânico. Milhões de pessoas hoje não vêem perspectivas de futuro e isso causa um mal enorme. Se continuarmos com esse modelo de sociedade, a depressão vai se tornar uma epidemia gravíssima”, alerta.

O psiquiatra Geraldo Possendoro concorda. “Estamos na era da ansiedade, em que tudo muda muito rápido, exige muita adaptação, muita flexibilidade interior. Isso agrava indiretamente muitos transtornos de ansiedade”, opina. As pressões sofridas no ambiente de trabalho, os riscos à saúde que certas profissões oferecem, a tensão para conseguir se manter no emprego e outros fatores ligados ao “mundo trabalho” levam comumente as pessoas a desenvolver crises de ansiedade, principalmente de pânico.

Jailton Garciabernadete
Depois do terceiro assalto ao local em que trabalhava, Bernadete começou a apresentar os sintomas da síndrome do pânico

Atitudes afirmativas

De julho a dezembro de 1996, a bancária aposentada Aparecida Bernadete Vieira Correa, de 49 anos, passou por seis assaltos nas agências onde trabalhou. Da primeira vez, os assaltantes fizeram o gerente refém. “Eu não sabia o que fazer. Eles gritaram ‘abre (o cofre), senão eu mato o gerente’. Entreguei cerca de 30 mil reais para eles. Naquele dia, fechamos o banco e fomos embora. Na manhã seguinte, assaltantes entraram gritando de novo. Foi aí que comecei a ter pânico.”

Bernadete era gerente operacional. Depois do terceiro assalto, não tinha mais condições de ficar com as chaves do cofre. Foi transferida de agência. No primeiro dia de trabalho, outro assalto, agora com morte. “Eu não conseguia mais atender. Fui trabalhar no almoxarifado. Toda vez que descia do trem para ir ao trabalho, tremia.” Não era à toa. Certo dia, ao sair do metrô foi abordada com um revólver por um homem bem-vestido que a levou até a agência para fazer o assalto.

Apesar das crises intensas, Bernadete não queria pedir demissão, pois trabalhava havia 20 anos no Banco Real. Procurou seu sindicato e passou pelo INSS. Ficou um ano e meio de licença, recebeu auxílio-doença por não conseguir exercer mais suas funções e fez terapia durante dois anos. “A terapia me ensinou a controlar as emoções, eu tinha de continuar a vida”, conta Bernadete, que hoje consegue entrar em bancos e sair de casa normalmente, apesar de ainda ter um pouco de medo.

Um estudo feito pela Unifesp revela que as mulheres são duas vezes mais atingidas pela doença e em 91,4% dos casos investigados houve algum acontecimento vital relevante relacionado ao início dos sintomas, principalmente perdas ou rompimentos afetivos. O melhor, em qualquer caso, é procurar um clínico geral, psicólogo ou psiquiatra para fazer o diagnóstico exato, pois muitas doenças podem ter os sintomas do pânico. “É preciso saber que você não vai morrer de pânico. É difícil, mas eu consegui. Então, qualquer um consegue”, comemora a designer de jóias Cristina Peixoto.

Sintomas

Físicos
Taquicardia, ondas de frio e calor, parestesias, falta de ar, tremores, sudorese, dor no peito, dor abdominal, sensação de desmaio, tontura, cefaléia, náuseas, diarréia.

Emocionais
Medo de morrer, medo de enlouquecer, medo de perder o controle, despersonalização/desrealização.

Recomendações gerais
Procurar um médico para fazer o diagnóstico, consumir pouco café, fazer exercício físico bem conduzido, dedicar-se a atividades que dêem prazer.