Justiça x democracia

Decisão do STF contra condução coercitiva foi vitória da resistência, diz Pedro Serrano

'Está havendo aumento das medidas de exceção, um avanço do autoritarismo, mas tem a resistência, também. Há idas e vindas nesse processo', afirma jurista sobre julgamento do Supremo

Diego Padgurschi/Folhapress

“É terrível o Judiciário achar que tem que comandar a sociedade”, diz professor da PUC de São Paulo

São Paulo – O julgamento em que, na quinta-feira (14), o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da condução coercitiva mostra que o jogo não está resolvido na luta pela democracia. O totalitarismo ainda não está instalado e a resistência contra ele alcançou uma importante vitória no STF, decisão que não tem efeito retroativo e não afeta, por exemplo, a utilização da medida contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março de 2016 pelo juiz Sérgio Moro.

“Está havendo aumento das medidas de exceção, um avanço do autoritarismo, mas tem a resistência, também. Ainda não chegamos a um momento de domínio total do autoritarismo. Há idas e vindas nesse processo. Essa decisão foi uma vitória da resistência em favor da Constituição e da democracia”, diz o jurista e professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Pedro Serrano. “O paradigma das medidas de exceção no interior da democracia sofreu uma derrota.”

Mas, para ele, a derrota não é particularmente do juiz Moro. “Não acho que ele tenha esse papel todo que a mídia lhe atribui. Ele tem assumido um papel relevante mais por conta do discurso que se faz sobre ele do que realmente pelo poder efetivo que tem na estrutura do Estado. Ele é uma peça de um tabuleiro muito maior.”

Por outro lado, diz Serrano, essa vitória judicial no julgamento pode gerar consequências adversas, a partir do próprio sistema de Justiça. “É preciso ver a reação concreta das autoridades, que hoje estão insubmissas. (A decisão) pode até causar uma reação negativa, no sentido de quererem aprisionar pessoas ou coisas piores. O argumento de terror: ‘se você me proíbe de fazer uma ilegalidade, eu faço uma pior ainda’”, avalia o jurista.

Como avalia o julgamento que considerou inconstitucional a condução coercitiva?

Foi um julgamento importante, mas é preciso ver a reação concreta das autoridades, que hoje estão insubmissas. Pode até causar uma reação negativa, no sentido de quererem aprisionar pessoas ou coisas piores. O argumento de terror: “se você me proíbe de fazer uma ilegalidade, eu faço uma pior ainda”.

Esse caminho é possível?

É possível porque há um comportamento agressivo contra a lei por parte das autoridades brasileiras do sistema de Justiça. Então tudo é possível. Já houve isso quando foi aprovada a lei que não puniria o porte para uso de substância entorpecente. Começou-se a prender e enquadrar em tráfico pessoas que portavam pequena quantidade, que deveria ser enquadrada para uso. Hoje os órgãos de aplicação do Direito se acham os donos da República.

O julgamento de quinta-feira significa uma derrota de Sérgio Moro?

Não acho que Sérgio Moro tenha esse papel todo que a mídia lhe atribui. Ele tem assumido um papel relevante mais por conta do discurso que se faz sobre ele do que realmente pelo poder efetivo que tem na estrutura do Estado. Ele é uma peça de um tabuleiro muito maior. Acho que há um paradigma de exceção, construída no mundo, e aqui no Brasil tem sido trazido desde a década de 90, e agora ele catalisou isso. Ele é um catalisador.

Veja que estranho falar em “derrota”. O papel dele deveria ser de garantidor de direitos, como juiz. Quem sai derrotada é essa visão, essa construção social, esse paradigma mais totalitário, que tem tendido a ir penetrando nas democracias ocidentais e aqui no Brasil também.

Eu não acredito no ser humano sozinho fazendo as coisas. Existem circuitos políticos e afetivos. Não são três ou quatro pessoas diabólicas atrás de uma mesa pensando em como sacanear o próximo amanhã. É um circuito afetivo de várias pessoas que se cria, abrindo espaço para surgirem certos pensamentos e afetividades que existiam como potência, mas não tinham se manifestado. Como foi o fascismo. Só que hoje estamos em outro momento, de outro modelo de autoritarismo, talvez não tão ruim como o fascismo, mas há uma tendência tão autoritária quanto: esse novo paradigma da produção de medidas de exceção no interior da democracia. Moro é um personagem midiático, mítico.

Então esse paradigma de Estado de exceção saiu derrotado?

Saiu. O circuito afetivo-político mais punitivista é que sai derrotado. Não gosto de usar a expressão “Estado de exceção”. São medidas de exceção. Esse paradigma de medidas de exceção no interior da democracia sofreu uma derrota. Claro, não há totalitarismo ainda. Não existem ainda domínios políticos absolutos. Está havendo aumento das medidas de exceção, um avanço do autoritarismo, mas tem a resistência, também. Ainda não chegamos a um momento de domínio total do autoritarismo. Há idas e vindas nesse processo. Essa decisão foi uma vitória da resistência em favor da Constituição e da democracia.

Esse julgamento mais uma vez mostra que o tribunal é bastante dividido, mas a decisão aponta para algum caminho?

Não. Acho que mostra uma vacilação da Rosa Weber, que ora está num grupo, ora em outro (a ministra foi um dos votos vencedores, contra a condução coercitiva). O grande problema é o tribunal estar dividido numa questão tão evidente, um caso simples: a interpretação do que é o sentido que a Constituição e a lei determinam. A solução correta face à Constituição e a lei é muito evidente – só se pode conduzir coercitivamente quem tenha rejeitado pacificamente. E mesmo assim há divisão no tribunal, sinal de que há uma parte dele que realmente quer agir totalmente fora da Constituição, querendo estabelecer não só um novo paradigma, que talvez fosse até legítimo, mas uma nova normatividade. Mas é terrível o Judiciário achar que tem que comandar a sociedade. Os canadenses chamaram isso de juristocracia.

Mas isso não é consequência de o Legislativo não legislar, no Brasil?

O Legislativo não legisla porque a sociedade está num momento, acredito eu, em que desvaloriza muito a ação legislativa. Um momento em que a política é pouco nobre. Isso não é à toa, isso é fabricado.

A Segunda Turma deve julgar na próxima terça-feira a ação penal contra a senadora Gleisi Hoffmann. Como vê a situação dela?

Creio que nessa Turma ela tem chance de ser inocentada, mas se fosse a plenário ela não teria chance, porque existe a postura populista de parte do plenário que não está vendo fato, processo ou lei. Porém, julgamento tem que esperar. Pelo que sei, o processo contra ela é muito frágil em termos de prova. Mas depois do caso do Lula, que é um caso absurdo, teratológico, acho que tudo é possível. A característica da exceção é ser imprevisível. Mas na Segunda Turma acho que ela ganha.

Essa Turma, agora presidida pelo ministro Lewandowski, parece mais aberta a preservar o Direito?

Alguns juízes do Supremo, o Lewandowski, o Gilmar Mendes, o Marco Aurélio,  o decano Celso de Mello, em algumas situações o Toffoli (todos da Segunda Turma, exceto Marco Aurélio), são mais preocupados em aplicar a lei e a Constituição. Podem até errar, o Celso de Mello erra de vez em quando, mas são erros normais de interpretação. Talvez eu esteja errado, não ele (risos). Mas a preocupação de aplicar a lei e a Constituição não existe para os outros ministros. Existe a preocupação de agir no Judiciário com uma racionalidade política, e não jurídica.

 

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