Guerra insana

Para ex-comandante da PM do Rio, guerra vitimiza periferias e também a polícia

Coronel Íbis Pereira afirma que abordagem bélica da segurança 'adoeceu' polícias brasileiras e que Ministério Público não cumpre seu papel. 'A desumanização faz das pessoas máquinas de guerra'

Alessandro Dantas

Coronel Íbis, professora Camila Dias (UFABC), deputado Paulo Teixeira e Jaqueline Muniz: soluções de longa prazo

Brasília – Acadêmicos, parlamentares, operadores de direito e agentes comunitários avaliaram nesta segunda-feira (12) a questão da segurança pública no país no seminário “Segurança Pública Cidadã”. O evento foi organizado pelo PT em parceria com a Fundação Perseu Abramo. A falta de um pacto federativo para o setor, a necessidade de políticas sociais integradas ao sistema de segurança e de uma polícia valorizada e mais bem preparada para ações inteligentes de investigação e prevenção, como questões consideradas cruciais e não atendidas pela operação de intervenção federal.

Ex-comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o coronel Íbis Pereira, apontou o fato de o Ministério Público não cumprir seu papel fiscalizador dentro dos sistemas de segurança. Segundo Pereira, os brasileiros possuem uma Constituição que há 30 anos diz que o MP é fiscal das atividades do setor e que a omissão do órgão permitiu a proliferação dos abusos e a impunidade.

“Então, por que casos que vitimizam as pessoas estão tão por baixo no MP? Essa instituição, que é tão poderosa, precisa dizer qual o seu alcance no tocante ao controle que tem de assumir, porque, se for o caso, a gente precisa partir para estudar outras opções de controle”, ressaltou.

O coronel fez uma leitura ampla a partir de dentro dos aparatos de segurança e afirmou que não haverá avanços para a defesa social se não se pensarem soluções que não sejam “empurrar os policiais para as zonas de pobreza”. Íbis Pereira já foi ele próprio foi alvo de Inquérito Policial Militar aberto pelo comando da polícia, por suas críticas ao sistema. 

Ele considera que a própria polícia acaba sendo vítima da “abordagem bélica” que se dá à segurança pública. “As polícias brasileiras estão doentes. Porque a guerra adoece. Submeter agentes públicos a isso desumaniza, pois só a desumanização consegue transformar pessoas em máquinas de guerra.”

Guerra sem fim

Os participantes defenderam a elaboração de um plano “mais sério”, de 15 anos, que inclua um processo de humanização da segurança pública a partir de marcos regulatórios que envolvam os compromissos de cada esfera de poder, da municipal à federal. 

De acordo com o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, um dos objetivos do evento foi coletar subsídios para o plano de governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato do partido à Presidência da República. “O seminário foi apenas a primeira iniciativa de muitas para discutir um sistema forte e eficiente de segurança pública”, ressaltou.

Para o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que coordenou os trabalhos, o debate foi hegemonizado por abordagens superficiais nos últimos tempos, por isso, é fundamental, a seu ver, que o Brasil pare para discutir o tema. “Enquanto na Europa a direita cresce no debate sobre migrações, aqui a direita cresce discutindo segurança pública com discurso populista relacionado à lei e à ordem”, afirmou.

“Temos de ter um projeto capaz de dar segurança para a população, mas que seja diferente desse que está em vigor. O que o Temer fez foi somente aliviar o desgaste das falhas na segurança no Rio de Janeiro com o uso das Forças Armadas, numa estratégia extremamente populista”, criticou.

Teixeira apresentou trechos de um estudo feito por 15 especialistas na área que será lançado no próximo 3 de abril, quando serão apresentados cinco eixos para a Política Nacional de Segurança Pública e tem, entre os integrantes, as pesquisadoras Jaqueline Muniz e Camila Dias, presentes ao seminário.

Criminalização da pobreza

Na avaliação do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), o que está sendo observado na intervenção decretada na segurança do Rio de Janeiro é o fracasso de uma política de guerra que vem sendo traçada nos últimos 30 anos. “Temos, hoje, em torno de 500 policiais que morrem por ano, 60 mil assassinatos anuais, dos quais 70% são jovens, negros e moradores das periferias. A política de guerra às drogas se junta à política de criminalização da pobreza”, disse.

“As incursões feitas nas comunidades possuem um custo altíssimo, sem resolverem, de fato o problema. Não se resolve a questão das favelas dominadas, hoje, pelas milícias ou pelo tráfico somente com operação militar. Nossas polícias precisam ter investigação e inteligência. Só no Brasil acontece de termos uma polícia que não investiga”, destacou o senador fluminense

A professora Camila Dias, da Universidade Federal do ABC, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou como problema sério a questão do controle dos detentos dentro das penitenciárias. “O sistema prisional é nebuloso. Quase inacessível por parte da comunidade. O Estado, em lugar nenhum do Brasil, tem condições de dizer que em determinado presídio não mais haverá rebelião e isso é muito grave”, afirmou.

A especialista Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), fez um alerta enfático: “O libertador de hoje será o tirano de amanhã. Não é a própria espada que tem de definir o alcance do seu poder. Não estou dizendo isso por ter algo contra os militares, mas simplesmente porque a espada não pode mais cair nas mãos armadas”, explicou. Na ótica de Jaqueline, o poder de polícia no país atenta contra a democracia, porque o controle é exercido por governantes, a partir de cada eleição.

“Precisamos ter políticas intersetoriais, mas não securitizar atividades civis”, avaliou, ao afirmar que considera que o principal problema da segurança pública no Brasil é político, “pelo fato de não existir, aqui, um pacto federativo voltado para a segurança pública”. Jaqueline defende que, a rigor, deveria ser admitido o uso das Forças Armadas na segurança pública para cuidar, apenas, da segurança nas fronteiras.

A professora ainda ressaltou que “em vários lugares do mundo a polícia é especializada e atua em separado do governo. Agora estão querendo integrar tudo. Não se pode confundir paz social com paz civil como estão fazendo”. “Precisamos tomar cuidado com isso. Precisamos nos educar com o controle da força, que necessita de consentimento social e de protocolos nos outros países. Só que aqui no Brasil, não sabemos quais são estes protocolos. Aqui o juiz mente dizendo que cumpre a lei, e a polícia permite a manobra política da tomada de decisão”, afirmou.

A presidente nacional do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), observou a esquerda tem boas propostas, “mas não as colocamos, de fato, em prática”, argumentando que os 13 de governo não foram suficientes para se criar uma nova cultura. “E a sociedade nos cobra muito isso, porque temos dificuldade de explicar o que significa uma segurança pública voltada para os direitos do cidadão. Só conseguimos pôr em prática conquistas da maior parte da população nos últimos 13 anos, aí veio o golpe de 2016 (impeachment da presidenta Dilma Rousseff) e desmontou tudo”, afirmou.

Para Gleisi, o pacto constitucional de 1988 foi rompido. “Primeiro, com o rompimento da ordem democrática. E depois, com a suspensão dos programas que estavam sendo desenvolvidos. Passamos por um enfraquecimento do Legislativo, aliado à judicialização da política e ao fortalecimento do Judiciário e do Executivo, que foi entregue aos interesses de uma economia concentradora de renda”, acrescentou.

 Material atualizado às 18h29 de 15/3/2018