Lula pelo Sul

Caravana de Lula no Sul confronta debate de projeto de país com discurso de ódio

Em visita à Universidade Federal de Santa Maria, Lula e Dilma são acolhidos por estudantes e pela comunidade acadêmica, que resistiram às provocações de grupos a serviço de ruralistas

Ricardo Stuckert

Passagem de Lula por Santa Maria marca efeitos da educação da vida de uns, e da falta dela, na vida de outros

Santa Maria – O encontro dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff com reitores de instituições federais de ensino do Rio Grande do Sul foi emblemático. A Caravana Lula Pelo Brasil chegou na tarde desta terça-feira (20) ao campus da Universidade Federal de Santa Maria, onde foi recebida por uma legião de estudantes e professores. Um gesto de reconhecimento pelos avanços no ensino superior observados nos governos petistas. Mas parte do tempo de celebração – e cobranças para o futuro – foi atormentada por um grupo articulado por ruralistas nas redes sociais, decidido a melar a visita.

Por trás de um pequeno cordão de isolamento montado por policiais militares, o grupo, majoritariamente masculino, provocava com xingamentos e ameaças aos trabalhadores, pequenos agricultores e jovens beneficiados pelos inúmeros programas sociais que mudaram a realidade da região nos últimos 15 anos. O presidente da CUT-RS, Claudir Nescolo, classificou a tentativa de obstrução da caravana como uma consequência das virtudes dos governos petistas.

“Estamos numa universidade que recebeu muitos incentivos e que agora não está sequer mantendo bolsas dos estudantes. Enquanto o Lula está lá em cima (em reunião com gestores universitários), discutindo legado e apresentando uma plataforma para a educação e para o futuro do Brasil, aqui fora estão estudantes e trabalhadores”, explica Claudir. “Mais adiante, lamentavelmente, estão os fazendeiros e sonegadores. São duas alas: uma, enorme, de estudantes e trabalhadores, e outra, pequena, de empresários, fazendeiros, sonegadores. É luta de classe”, define. “Afinal de contas, o fato de pela primeira vez na história os trabalhadores alcançarem tantas conquistas incomodou muito. Estão saindo para a rua, porque o medo deles é que o Lula volte a concorrer e vencer. E enquanto os cães ladram, a caravana da esperança passa.”

Durante a reunião, Lula reforçou proposta que já havia apresentado em outras etapas da caravana, de federalizar o ensino médio. Ele voltou a dizer que a elite não quer investir em educação. “Custa caro (fazer universidades), mas quanto custa não fazer? Quanto custou a esse país não alfabetizar a população na década de 50?”, questionou. E citou a atuação dos ministros Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro para desconstruir o governo Temer. “Quem tem esse ministro (Mendonça Filho) é porque não acredita na educação.”

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Legado

A Universidade de Santa Maria começou a surgir nos anos JK, e inaugurada em 1960. Tornou-se referência no país, passou por um período de estagnação e teve sua estrutura ampliada durante os governos petistas, a partir de 2005. Atualmente com 30 mil alunos, quase 300 cursos e mais de 2 mil professores, é uma das mais procuradas da região Sul. Depois do golpe de 2016, que teve como uma das primeiras consequências a aprovação de uma emenda constitucional que congela os investimentos públicos por até 20 anos, a instituição teve seu desempenho abalado.

A professora de História Roselene Ponner, 53 anos, tem mais de 30 anos de atuação na rede pública estadual e há nove dá aulas no setor de ensino médio da UFSM. Ela constata que com a edição da chamada “PEC da Morte”, os cortes de recursos já afetam equipamentos que foram adquiridos com a expansão da universidade, do ensino superior e técnico, a partir de 2003. “Inclusive os de multimídia, tão essenciais à formação atual, estão sucateados. Não estamos tendo condições de repô-los.”

Roselene diz que a escola não tem mais notebooks para todos os professores, faltam caixas de som para as aulas, os laboratórios das escolas técnicas estão se deteriorando. “O Brasil está diferente em função deste governo usurpador do poder, reservando aos trabalhadores uma situação aviltante. Como trabalho em cursos profissionalizantes, que preparam os futuros trabalhadores, penso que esse governo ilegítimo não pode continuar.”

Depoimento da professora Roselene

A professora se surpreendia, com olhar de orgulho, a cada aluno que encontrava saudando a caravana. “Como professora de História, tenho compromisso público de preparar os nossos alunos para enfrentar um Brasil diferente daquele que nós vivemos com a gestão dele e da presidenta Dilma. Mais emocionante do que ver o Lula, foi ver a emoção dos meus alunos.”

Ela lamenta os gestos dos grupos que hostilizavam a visita. “Vi um grupo de jovens, em frente ao prédio onde trabalho, chegando em camionetes luxuosas, com faixas de repúdio (a Lula). Vivemos numa democracia, temos de frisar isso. Por mais que a gente saiba que atitudes que estão sendo tomadas corroem essa noção de democracia, não podemos perder essa referência e deixar de defender a democracia. O Brasil é ainda uma democracia. Como professora, me invisto do direito e do dever de lutar por essa democracia. Quanto a essas manifestações, fico preocupada, porque são jovens, muitos sendo formados aqui dentro da universidade pública.”

A estudante Andressa Roana Costa Schley, de 25 anos, está no último semestre do curso de Engenharia Sanitária e Ambiental. E percebe prejuízos causados ao ensino após o golpe. “O ano passado já começou com cortes e este ano os cortes vieram mais pesados”, afirma. Para ela, a experiência universitária vai além do acesso a um diploma. Se hoje eu tenho acesso, é graças a políticas sociais da época do governo Lula, graças ao Reune. Hoje tem Engenharia Sanitária Ambiental na UFSM. Se não fosse isso, eu e muitos colegas de todos os cursos que vieram com essa ampliação não teríamos condições de trabalhar e de ter um ensino que proporciona uma análise crítica. Ter acesso à educação é poder pensar um pouco mais sobre a sociedade.”

Moradora de Porto Alegre como Andressa, a colega Stefane Silva Soares, está no 5º semestre de Engenharia Civil. Tem quatro irmãos, acompanhou as dificuldades da mãe “pra alimentar os filhos” e o “respiro” alcançado pela família, moradora da Vila Farrapos, na periferia de Porto Alegre, a partir da década passada. “Minha mãe, que chegou a não ter comida pra dar pra gente, até dois carros ela conseguiu comprar, reconstruiu a casa, deu uma educação melhor pra mim e meus irmãos.” Stefane conta que a mãe, que conseguiu fazer o curso Técnico em Enfermagem e ainda sonhar entrar numa universidade, a inspirou a avançar. A escolha pela Engenharia Civil, explica, foi pra poder mudar “não só minha vida, como a vida de todo mundo”. Ela pretende montar um “empresa social”, que atue na periferia.

Violência

Temos direito à democracia e a expressar nossas ideias, mas não com violência. Eles são muito violentos”, diz Stefane, perplexa ao ver “um moço com a camiseta da CUT” quase ser atropelado por um “manifestante de direita”. Para ela, não é assim que se muda o mundo. “Tanto esquerda quanto direita, temos que respeitar a opinião alheia”, defende.

Depoimentos de Andressa e Stefane

Sua origem humilde se assemelha à da mestranda em Engenharia Ambiental Melissa Rocha Ragagnin, de 25 anos. Melissa nasceu em Dourados (MT) filha de pequenos agricultores gaúchos, vive em Santa Maria desde os 7 anos, e identifica a importância da universidade desde a oportunidade usufruída pelo pai. “Meu pai teve acesso ao ensino superior aqui na Universidade de Santa Maria, cursou Agronomia. Conseguiu emprego, é agrônomo e está trabalhando aqui no estado. “O que possibilitou essa vida para ele foi a Casa do Estudante e o acesso ao ensino gratuito. Meu pai veio antes de mim. E hoje em dia eu e minhas irmãs estamos numa universidade pública e gratuita. Eu pretendo continuar no mestrado, e depois no doutorado. E trabalhar por uma educação pública e de qualidade. Continuar. Devolver para a sociedade tudo o que eu recebi”, planeja.

Para Melissa, as pessoas que estão no campus com a finalidade de obstruir a passagem da caravana não têm noção da realidade. “É tão absurdo, espanta. Brigas, xingamentos, falta de respeito. É algo que assusta e que ao mesmo tempo reforça o porquê de a gente estar aqui e por que a gente tem que lutar por um país melhor, para que isso não aconteça.”

Ela faz seu próprio juízo dos grupos que hostilizam a caravana, como uma reação de quem não gosta da ampliação da UFSM. “A gente vê que são pessoas que não querem que os trabalhadores acessem a universidade, não querem que os trabalhadores tenham acesso ao ensino superior. Acho que essa reação vem com muito ódio, com violência e xingamentos, de quem está descontente com as pessoas que estão acessando a universidade pública hoje.”

Esperança

Ricardo Stuckert
Lula e Dilma respondem hostilidades de alguns, com debate de legado e projetos acolhidos pela universidade

Pró-reitora de extensão da UFSM de 2014 a 2017, a professora do curso de Enfermagem da instituição Teresinha Weller, 56 anos, atua na área de saúde coletiva há mais de três décadas. Desenvolveu projetos de inclusão com grupos sociais vulneráveis nas cidades onde a universidade tem seus campi (Santa Maria, Cachoeira do Sul, Frederico Westphalen e Palmeira das Missões). E implementou uma incubadora social para atuar com indígenas, negros, quilombolas e pequenos agricultores. A empreitada envolve projeto de moradia estudantil indígena, destacando a forte presença dessa comunidade na localidade. Ela enfatizou que as comunidades precisam ser acolhidas na universidade.

“A gente sabe que historicamente a universidade, principalmente a pública, se furtou muito do seu papel em relação a esses grupos com maior vulnerabilidade nos territórios”, avalia Teresinha, que diz só ter encontrado alguma tranquilidade para trabalhar no primeiro ano de gestão, em 2014. De lá para cá, segundo ela, o trabalho continuou, mas com dificuldade, sobretudo depois do golpe em 2016, devido aos cortes. “Hoje, a extensão nas universidades públicas se dá unicamente com recursos próprios, e esses recursos a cada ano ficam mais restritos. Mantido esse cenário, o prognóstico é desalentador e a universidade deixará de cumprir seu papel, que é o de fazer a interlocução com a comunidade.”

A pró-reitora vê como “um grande conforto” a passagem da caravana. “Ele nos dá esperança. A resistência a esse processo terrível pelo qual ele passou, sua família e sua esposa… ele estar hoje conosco é uma esperança. E nos coloca de novo o sonho de que é possível construirmos um país mais justo, mais inclusivo. O Lula é a nossa esperança, de jovens, de idosos e de crianças.”

Colaborou Luciano Velleda

Os passos da caravana