Entrevista

Temer e as delações da JBS: grande capital dá sinais de desacordo

Com tiro dado contra Temer e o aprofundamento da crise, Globo planeja garantir sobrevida de um dos seus principais anunciantes ou pavimentar caminho para um herói salvador, diz Clarisse Gurgel

Marcos Corrêa/PR

Para cientista política, crise aponta que Temer não é o nome de consenso da burguesia

IHU On-Line – A delação dos executivos da JBS e a gravação entregue pelo dono da empresa, Joesley Batista, à Procuradoria Geral da República – PGR, noticiadas pelo jornal O Globo na última quarta-feira (17), indicam que há um “desacordo entre o capital” em relação a qual será o seu candidato nas próximas eleições presidenciais, diz a cientista política Clarisse Gurgel à IHU On-Line, na entrevista concedida por telefone.

Na avaliação dela, “o furo da rede Globo, ao noticiar a gravação envolvendo o presidente Temer, não teve a força que a Globo tentou imprimir (…) porque efetivamente não existe conteúdo concreto que incrimine o presidente”, afirma. Para ela, “a pergunta que fica no ar é: por que a Globo estaria disposta a provocar tamanha instabilidade num cenário que já é de extrema instabilidade e numa conjuntura em que só falta um ano para as eleições diretas?”.

A resposta, afirma, pode se dar de duas formas: uma porque “a JBS é uma das maiores patrocinadoras da Globo, que enfrenta numa crise brutal”, e outra, para “criar um cenário favorável para que um segundo nome de possível candidato à Presidência apareça e seja aquele capaz de espelhar o Brasil que está devastado politicamente e que anseia por uma espécie de herói que irá inovar a política. Esse segundo nome seria capaz de implementar as reformas que o capital quer no ritmo e radicalidade que quer, e seria capaz de criar um ambiente de modo a flexibilizar o Estado ainda mais, para que a própria rede Globo seja salva”. Clarisse diz ainda que o envolvimento de Aécio Neves nas delações da JBS indica que a “movimentação” do grupo queria “respingar na disputa interna do próprio PSDB”.

Clarisse defende a tese de que os últimos acontecimentos, incluindo as investigações da Lava Jato, seguem um plano que, por enquanto, se desdobra em três níveis: “O plano A, que consiste em tornar Lula inelegível, o plano B, que é derrubar Temer para gerar uma eleição indireta”, e “um plano C, que é criminalizar Temer para fazer valer uma eleição mais favorável no ambiente do Congresso e viabilizar as reformas requeridas pelo capital”.

Os desdobramentos desses fatos, especula, expressam “duas movimentações subterrâneas”. Uma delas tem a finalidade de “criar uma nova arena para a política, que é a arena do Judiciário. Esse processo de judicialização da política vai forjando quadros no Judiciário para a disputa da República, e por isso surgem nomes como o da ministra Cármen Lúcia, de Jobim e de Moro”. A outra movimentação, afirma, “indica que ainda há o nome de Doria como aquele que começa a corresponder à necessidade de que o presidente da República espelhe os anseios da sociedade. Doria é um empreendedor de sucesso, sem passado político, e tem um potencial, portanto é possível o PSDB encontrar um quadro que não seja o Aécio”.

Clarisse Gurgel é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), mestra em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e doutora em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). Atualmente é professora da UNIRIO.

Qual sua leitura da atual conjuntura brasileira, especialmente da crise política?

A maior dificuldade em responder a esta pergunta se deve ao fato de que quando lemos alguns sociólogos clássicos, eles sinalizam algum aspecto que sirva para uma espécie de energia que imprima uma ordem social. A dificuldade agora é que estamos sem conseguir capturar essa energia que imprima essa ordem social. Não que estejamos vivendo uma desordem, mas vivemos uma conjuntura de muita desorganização da classe trabalhadora, dos partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais e não visualizamos nem mesmo um grande movimento social que apresente uma perspectiva. Portanto, há uma ausência de sujeitos coletivos que apresentem uma perspectiva de transformação radical da sociedade brasileira. Essa dificuldade de capturar uma energia que imprima uma direção para a sociedade se deve ao fato de agora estarmos testemunhando que o Judiciário, em especial, está fazendo ruir tudo o que se acumulou de tradição política no Brasil.

Na política não existe vazio e, se surge algum vazio, ele logo é preenchido. O exemplo mais trágico disso é o Nazismo, que surgiu posteriormente a um processo de deterioração social e de produção de mazelas intensas, que foi o período pós-guerra. O que temos testemunhado agora é um processo que nos faz lembrar mais ou menos essa experiência do passado, ou seja, o Brasil parece perder um pouco da sua tradição política, inclusive em termos de nomes: os políticos clássicos estão desgastados em torno de acusações envolvendo corrupção e o que se tem de perspectiva é o que chamamos de processo de indeterminação intensa, ou seja, não se sabe que rumo o Brasil vai tomar. Em momentos como este, em que as coisas ficam indeterminadas, em que não se sabe para qual direção o país caminha, em que o desalento e a descrença são muito grandes, o que se costuma vislumbrar ao longo da história é um processo em que o que preenche o vazio político é algo que espelha esse grau de indeterminação e de falta de perspectiva.

Diria que vivemos hoje um período em que a política que irá preencher esse vazio parece começar a ganhar forma através de um perfil que foca na imagem de um sujeito individual e não na de um sujeito coletivo, de um sujeito sem tradição na política, sem vínculo estável ou construído através de alguma estrutura política clássica, como um partido. Essa política que digo que irá ocupar o vazio parece tomar forma quando o PSDB encontra um nome, em razão de sua própria crise de quadros, e o nome parece ser o de João Doria.

Desde 2013 vivemos uma política caudatária das manifestações de junho. Isso porque os setores de direita pegaram carona na cauda da insatisfação desorganizada da esquerda, na perspectiva de forjar um nome para a disputa nos marcos da direita e da extrema direita, ou seja, nos marcos da democracia indireta. E parece que agora surge um quadro, a partir de uma parceria com o Judiciário, que quer fazer ruir todos os quadros anteriores e aquilo que se acumulou de valores em torno da política e da vida social no Brasil. Agora também parece que o PSDB está colhendo os frutos dessa avalanche que ele mesmo provocou a partir das jornadas de junho. O fruto não poderia ser pior: é um fruto que tem uma face indeterminada, sem passado e com grande perspectiva de não ter futuro. Se temos um cenário de desalento e a esquerda segue desorganizada, o que parece se cultivar disso é mais desorganização e desalento, porque o nome para preencher esse quadro terá essa face e irá implementar um projeto que não é fruto da classe trabalhadora, mas que tem sido reivindicado por setores cujos porta-vozes não surgem da luta concreta.

Por que vê Doria como uma possibilidade para “ocupar o vazio” da política?

É difícil analisar o processo eleitoral, ainda mais nesse contexto de indeterminação, e também é difícil fazer uma análise da disputa eleitoral para daqui um ano. Mas analisando a situação agora, temos que levar em conta no processo eleitoral não somente o nome do sujeito que é candidato, mas em especial as forças que estão em torno desse nome. O PMDB sempre foi o partido que elegeu os candidatos, porque tem a maior penetração na classe trabalhadora pelo clientelismo e pela compra de votos que acumulou ao longo da sua trajetória. Entretanto, o partido está no alvo da avalanche peessedebista, porque se é preciso instaurar um grau de indeterminação extrema, é preciso fazer ruir o que é a estrutura basilar do sistema eleitoral brasileiro, que é o PMDB. Nesse sentido o partido entrou também no hall daqueles que serão afetados. O PMDB pode embarcar no projeto do PSDB como refém dele, numa perspectiva de se reerguer posteriormente, e o PSDB conta com esse parceiro.

Lula, o mártir

Não se trata apenas da eleição de João Doria, mas da campanha eleitoral, do recurso que se poderá reunir e da adesão do empresariado X ou Y, que poderá garantir a eleição de Doria. Na verdade, não importa o nome do rei, mas que ele irá cumprir o papel de rei para unificar interesses particulares que tenham uma cara de interesses universais. Se ele consegue reunir o setor do empresariado que tem capacidade de injetar recursos e sustentar um governo, ele tem chances efetivas de eleição. Agora, se isso acontecer, Doria irá encarar em 2018 – se o Judiciário não impedir – um candidato fortíssimo e que está crescendo cada vez mais na roupagem de um mártir, que é o Lula. Se ele já tinha um apelo popular imenso – o qual não precisamos nem explicar -, imagina agora acumulando esse processo indubitável de perseguição. Ele não é só um nordestino que teve o corpo maculado pela labuta diária, em que perdeu um dedo; ele conseguiu, mesmo analfabeto, conquistar o posto de direção de um país, foi boia-fria, mas é agora também um perseguido pelos tribunais solenes do Judiciário. Ou seja, Lula não é qualquer vítima, ele é vítima do que o povo é vítima, porque se formos observar o Judiciário nos marcos do sistema penal, a grande clientela do Judiciário é o povo pobre, que sabe o que é ser perseguido pelo Judiciário.

A história é feita de repetições, as quais por vezes aparecem como tragédia e posteriormente como farsas. Isso quem diz é o próprio Karl Marx. Ela aparece como farsa não só no sentido de ser simulada, mas no sentido de ser cômica. Como o Lula pode retornar? Como resposta àquilo que o derrubou, ou seja, justamente por conta do fato de ele não ter implementado, no ritmo que a burguesia exigia, as reformas que o empresariado precisa para manter as suas taxas de lucro. Que reformas são essas? As da previdência e a trabalhista. O Lula, sob a roupagem da Dilma, cai por isso e, em especial, porque Dilma não tinha a capacidade que o Lula tem de conter as tensões de classe. Uma das primeiras medidas de Dilma foi diluir o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que era o espaço em que o Lula promovia os diálogos de conciliação de classe.

Por que eu falo que podemos testemunhar um processo de repetição como farsa? Porque o Lula – e no caso a Dilma – cai por não implementar as grandes reformas no ritmo que o empresariado exigia. O que pode fazer com que Lula seja necessário de novo? Um aspecto que vai fazer com que ele seja eleito e se mantenha é a reorganização mínima da classe trabalhadora em reação às ameaças em torno das reformas que Lula não fez no ritmo necessário no passado. Essa reorganização vai fazer com que a classe trabalhadora comece a recuperar o seu imaginário e, aí sim, torne a se espelhar em figuras como o Lula. Desse modo, Lula volta a ser a política que vai preencher esse vazio de indeterminação da classe trabalhadora e, portanto, o nome que espelha essa classe trabalhadora: um trabalhador, um boia-fria.

O retorno do ex-presidente Lula à presidência não pode ser afetado pelo andamento da Operação Lava Jato, pelas delações e investigações de corrupção envolvendo os governos petistas com as empreiteiras, por conta da condenação de José Dirceu e, inclusive, da impopularidade do PT nas últimas eleições municipais?

Sim. Mas veja que as mobilizações desorganizadas que se iniciam tendem a um caráter performático. Esse processo de reorganização efetivo da classe trabalhadora requer tempo, criatividade e capacidade de superar obstáculos concretos. Lula carrega não só a imagem de um trabalhador, mas de um trabalhador criminalizado, exatamente como é a classe trabalhadora. Ou seja, ele espelha melhor do que antes a classe trabalhadora. Não é à toa que, desde o primeiro depoimento ao juiz Sérgio Moro, setores que antes faziam uma oposição pela esquerda estão erguendo palavras de ordem em nome de Lula e manifestando seu voto a favor dele.

É claro que esse reespelhamento não irá eleger Lula, mas o que vai elegê-lo é o suporte material fundamental para que essa identificação ocorra. E que suporte material é esse? O capital, porque vivemos no capitalismo, ou seja, é quem vai investir nessa campanha. O que é preciso para que Lula seja eleito é que o capital reivindique seu nome não por um reespelhamento, mas por uma necessidade. E como o capital vai necessitar do Lula? Quando ele precisar de alguém que tenha uma habilidade que só Lula demonstrou ter, de conter as tensões de classe.

Então, temos um processo de avanço das reformas, acirramento dos ânimos por parte da classe trabalhadora, reorganização ainda que precária da classe trabalhadora e o reespelhamento identitário em face do Lula, o que leva a acirrar os ânimos e produz instabilidade. Não é à toa que Michel Temer está inseguro em relação aos votos da reforma da previdência e impede que o capital prossiga livremente como estava prosseguindo, e isso faz com que Lula seja necessário novamente, mas não para a classe trabalhadora, e sim para o capital.

Segundo seu raciocínio, com o retorno de Lula à Presidência e sua rearticulação com o empresariado, as reformas seriam feitas?

Sim, porque elas já estão sendo encaminhadas. Para o empresariado é melhor encaminhar essas reformas sem precisar de uma figura como Lula ou Dilma, só que o empresariado está testemunhando um processo de reestruturação da classe trabalhadora em face disso. A vantagem do empresariado é que essa reorganização ainda é precária porque a classe trabalhadora é vítima de uma preponderância da ação performática na vanguarda da esquerda.

Então a grande vantagem da eleição do ex-presidente seria manter a estabilidade depois que as reformas fossem aprovadas?

Sim, mas aí na política nada é como um jogo de Damas, em que as peças têm posições claras, com o preto e o branco bem definidos. O empresariado só vai entender a necessidade do retorno de Lula se não conseguir encaminhar tudo que precisa e se sentir que as consequências da pobreza que vai gerar serão danosas para o próprio empresariado, porque as reformas vão gerar danos, miséria e desemprego. Isso não é confortável para o empresariado, porque pode gerar uma guerra civil, ou seja, esse tipo de situação gera processos de convulsão populares sem direção. Mas esse aspecto pode ser resolvido sem precisar de Lula, basta criar um Estado policial ainda mais repressor e empregos inúteis que sirvam apenas para gerar uma renda mínima para o trabalhador consumir, mesmo que seja a crédito.

A ironia é que, quanto mais a classe trabalhadora for organizada e a sua reorganização significar algo para além da performance, mais ela vai criar um terreno fértil para que o empresariado adote para si nomes que tenham entrada na classe trabalhadora. O cenário só muda se a própria esquerda tiver um nome.

Esse momento de indeterminação é consequência do que e qual foi a contribuição da esquerda para que se chagasse a esse momento?

Esse momento de indeterminação é um momento que alguns teóricos, especialmente os da teoria psicanalítica, costumam chamar de a crise da função paterna ou de perda de eficácia da função paterna. Ou seja, a função paterna é aquilo que encarna um momento em que o ser tem que caminhar com suas próprias pernas e se separar da mãe, isto é, da fonte das suas necessidades mais primárias. Esse momento de separação e de ter que caminhar pelas próprias pernas, é um momento de inserção desse indivíduo na sociedade. Então, parecemos viver num contexto em que os valores universais que são organizadores da vida em sociedade estão em crise. Vemos que as pessoas são pouco tocadas por questões morais e éticas a respeito do que vão fazer, ou seja, vivemos segundo o que esses psicanalistas chamam de o imperativo do gozo: o que importa é o que eu quero fazer, o que me dá prazer, e não importa se isso é correto ou não. Esse imperativo paira sobre nós e revela uma crise dos valores universais que são cultivados na vida em sociedade com o outro. Não concordo que se viva a perda da eficácia desses valores, porque ainda temos a influência de “grandes outros” na vida, ou seja, daqueles que encarnam esse olhar sobre as nossas ações e a reunião de valores que nos espelham. E não é à toa que a grande mídia é um “grande outro”, porque ela é a fonte de opinião pública. Portanto, existe o público e a face opinativa desse público; ainda se compartilham valores e ainda somos interpelados por valores éticos e morais.

Valores universais

O problema é que os valores universais que interpelaram a humanidade desde a modernidade são valores que comprometem a livre ação do capital: justiça, igualdade, fraternidade são valores que são empecilhos para que o capitalismo possa se ressignificar num contexto de crise cíclica. Essas crises impelem o capital a fazer uso de recursos que exigem a ausência de limites, e o neoliberalismo é exatamente isto: o modo de produção capitalista sem limites. Esses limites encostam nesses valores universais. Quando a burguesia está diante de um contexto que tem uma face material, como uma crise de circulação de mercadoria que leva à queda dos seus lucros, e outra face de um conteúdo ideológico que não permite uma livre ação no sentido de se reciclar e superar a crise, ela precisa incidir sobre as duas coisas, na capacidade de se reciclar e na capacidade de romper e destituir esse conjunto de valores que são obstáculos para ela. No campo material, ela incide na política e naqueles que vão fazer o papel de administrar a luta de classe, e, no campo ideológico, ela precisa imprimir e semear um terreno em que esses valores entrem em crise efetivamente. Não é à toa que o porta-voz da modernidade é a própria burguesia, que tem um desapego aos valores universais.

Contribuições da esquerda para a crise

A esquerda infelizmente contribui para isso e a direita é muito habilidosa; Marx dizia que o capital tem a habilidade de se reinventar e lidar com suas próprias crises. A esquerda contribui porque os instrumentos usados por ela ao longo dos tempos, os partidos e os sindicatos, foram utilizados e mobilizados na lógica do capital, e isso levou ao julgamento de que os problemas estão nos instrumentos. Logo, essa é uma deixa para que o capital tempere os desgastes desses instrumentos.

Traduzindo: quando nas jornadas de junho as tensões internas da esquerda se expressaram através de uma rejeição extrema a partidos — porque a rejeição a partido não é da direita – e a sindicatos, entrou-se numa tensão interna enorme e semeou-se o imaginário de que é possível ir para rua de forma autônoma, como se cada indivíduo fosse capaz de seguir a vida sem influência exterior. Isso tem um eco enorme no imaginário da liberdade individual da direita e da extrema-direita, porque foi a primeira vez que apareceu a palavra de ordem de rejeição aos partidos na rua, e isso não veio da direita, mas da esquerda; a questão é que a cor dessa rejeição mudou. Se a rejeição naquela ocasião era vermelha, ela passou a ser verde e amarela. Então, a esquerda contribuiu para que esse quadro de indeterminação que é favorável à burguesia se fortalecesse.

O esforço de consciência de classe requer um grau de organização muito maior do que o grau de organização em torno de uma luta identitária. Então, o que precisava nas jornadas de junho era um grau de organização muito maior, mas aqueles que estavam na vanguarda impediam que isso ocorresse justamente por causa da ideia de que o problema estava na organização, pois a organização rompe com valores singulares, individuais e caminha na direção de valores universais. Este é o papel da organização: tornar orgânico algo que em princípio não está orgânico entre as pessoas. Então, é nesse sentido que a esquerda contribui, e as jornadas de junho contribuíram para esse cenário de indeterminação que é vital para o capitalismo superar suas crises.

Você tem classificado as ações da esquerda como “performáticas” no sentido de que elas são uma “tática de visibilidade”, como as manifestações, passeatas, greves convocadas pelos movimentos de esquerda, mas chama atenção para a “ausência de um enraizamento real dos sujeitos coletivos nas suas bases sociais”. Pode nos explicar essa ideia de performance?

Quando vieram as jornadas de junho — e é muito importante dizer que, mesmo com a rejeição a organizações de tradição universal, existia uma constituição de fóruns organizativos e deliberativos, decisórios numa perspectiva de construir as manifestações de forma coletiva —, começou-se a testemunhar um crescimento das mobilizações ainda que se sentisse que a ação política não extrapolava aquilo que identificamos como resistência. Ainda se estava no marco da resistência de impedir o aumento de uma tarifa, como foi com a tarifa do transporte público, mas não se estava na perspectiva de disputar um poder.

A esquerda vítima de si mesma

De toda forma, começávamos a observar uma perspectiva de reorganização da classe trabalhadora pelas ruas, porque ali se fazia revitalizar a crença na luta, a crença numa democracia mais direta, a superação de um certo fetiche na negociação. Ali começava a se vislumbrar o retorno de um imaginário que é importante para recuperar a tarefa de reorganização da classe, porque o enfrentamento de ir para rua é a manifestação de uma democracia direta. O problema é que fomos vítimas de nós mesmos, porque ir para a rua desorganizadamente na perspectiva de recuperar valores para reorganizar, implica traçar uma diretriz da ida para a rua: vamos para a rua recuperar valores que são importantes para que as pessoas percebam a importância de se reorganizar. Para isso é preciso ir organizado e com uma direção, mas isso encosta justamente no imaginário que está desgastado e do qual a própria vanguarda é vítima.

Sendo assim, quem poderia ter capitalizado essa mobilização desorganizada?

A política também é feita de inevitabilidade, então não daria para fazer diferente. O que foi feito foi o que se pôde fazer, ou seja, a realidade era aquela que estava dada e até se fez muito diante da situação.

Greve Geral do dia 28 foi um sucesso dada a conjuntura da esquerda, porque para o que se podia fazer, se fez mais. Então, a questão é: se medirmos a política pela visibilidade, as jornadas de junho parecem ter sido uma alternativa à performance, porque de fato o povo foi para a rua. Mas agora, se você acredita que a luta política é só resistência e só denunciar na rua, o que vai acontecer é que “o grande outro”, aquele que é capaz de dar sentido — entendendo dar sentido como traduzir e dar um rumo — é quem tem acesso à estrutura.

Enquanto a esquerda não recuperar a sua tarefa de disputar espaços na estrutura, ela ainda estará refém da subjetivação dos grandes outros que estão acima de nós, como a mídia e a alta burguesia. E subjetivar é justamente dar sentido. A performance nada mais é do que isto: tentar dar a entender que aquilo é espontâneo e que está ganhando forma à medida que se faz, quando a forma quem dá é quem tem poder de traduzir. Então, diria que as jornadas de junho nascem dramatúrgicas e morrem performáticas, e a greve geral nasce performática e segue dramatúrgica. Vou explicar: o dramatúrgico é aquilo que tem um texto e que carrega, em si, texto, contexto e pretexto. A contraposição que faço é de que é possível fazer política criando um contexto, com um pretexto e um texto, ou seja, uma estrutura e um discurso.

Quando as jornadas de junho começam com a mobilização em torno do combate ao aumento das tarifas, o que se tem é uma dramaturgia, ou seja, um contexto, um texto, que é um discurso contra aquilo, e uma estrutura, que é o movimento Passe Livre, e ainda um pretexto, que era não só impedir o aumento das tarifas, mas que o perfil ali representado recuperasse a crença nas ruas. Ali tinha uma dramaturgia nos limites do contexto daquele período e o que faltou foi criar um novo contexto para si mesmo, para a própria vanguarda enxergar o mundo de forma diferente do que ela está enxergando. O problema da vanguarda da esquerda é que ela está sendo vítima da própria ideologia burguesa, mas ali havia texto, pretexto e um contexto, ainda que precário.

Depois, o que se tem é uma redundância da ação para a rua na rua, ou seja, ela se restringe à rua e à visibilidade, a ponto de não mais conseguir se organizar para ir para a rua, porque as tensões internas são tão grandes que os fóruns de organização implodem e até a organização para ir para a rua fica prejudicada. Isso lembra uma performance teatral: se você ensaia pouco, um único indivíduo faz sua apresentação, a qual acaba, e volta para casa, depois outro vai lá e faz a sua apresentação, cada um com seu cartaz, ou seja, é algo efêmero, sem uma consequência.

Depois teve a greve geral, que nasceu performática e seguiu dramatúrgica, porque ela nasceu mobilizando uma figura que não tinha eco na realidade, que é a greve, e ela tem uma espacialidade e temporalidade própria: ela se expande na classe trabalhadora e dura no tempo. Mas a greve geral convocada foi de um único dia, ou seja, se imprimiu uma performance teatral, porque a greve durou um único dia, algumas horas, e ainda foi convocada num contexto em que uma greve local não estava sendo construída. Isto é importante de se dizer: em nenhum momento os sindicatos conseguiram construir em suas bases sociais uma pauta local, porque a luta de classes requer um subsolo e esse subsolo é local, ainda que se tenha uma dimensão nacional, mas não existia subsolo para a greve geral.

Mesmo assim existia algo de favorável para que ela ocorresse, que é o fato de as ameaças à classe trabalhadora serem nacionais. Mas isso não é suficiente para que se faça parar uma atividade produtiva. O que se anunciava era algo que seria expansivo no espaço, duradouro no tempo e consolidado na base, então justamente por isso a greve nasce performática, mas segue dramatúrgica, porque ela teve um efeito surpreendente: contou com algumas categorias, como os rodoviários, e com setores que não são da vanguarda da esquerda, como o setor dos professores privados, que estão tocados com o que o governo está fazendo com a educação.

A greve também contou com a mídia internacional que tem interesse em desgastar o Temer em nome do PSDB, como aquele que não está sendo capaz de cumprir a pauta da burguesia. Contar com todos esses fatores permitiu que a greve geral do dia 28 perdurasse para além do dia 28 e criasse uma textura que até hoje nos faz falar dela e pensar quando será a próxima, a ponto de alguns sugerirem que a paralisação do dia 28 foi um ensaio. Então, criou-se um contexto novo de expectativas e revitalizou a política na vida cotidiana.

Há uma crítica de jovens intelectuais de que a esquerda tem sido sufocada pela esquerda petista, a qual não dá oportunidade de pensar algo novo à esquerda. Como você vê essa nova geração que tenta trazer outros elementos para pensar o desenvolvimento da esquerda? Diria que há uma disputa interna na esquerda?

Essa nova geração – e isso é preocupante – não viu muita coisa que nós vimos, como as Diretas, os resquícios da Ditadura, não conviveu com pais e tios torturados, não viu as reivindicações por direito ao voto, a possibilidade de ter um partido com a face da classe trabalhadora, não viu a formação da CUT, ou seja, nós somos herdeiros disso. Essa geração de hoje, ao contrário, viu um escracho de tudo isso, ou seja, de se fazer ruir tudo isso, a ponto de se ter vergonha de reivindicar coisas desse marco. Essa nova geração também não testemunhou um reverencial muito grande ao serviço público: nós vivemos a transição de sair de um contexto em que o sonho do sujeito era ser servidor público para servir ao Estado, até que se viu uma geração que quis ser servidora para ganhar muito e trabalhar pouco, e hoje vemos uma geração que quer ser empreendedora, porque esse é o sinônimo do sucesso numa época em que não estão mais em questão os valores éticos.

Para a nossa geração o PT ainda exerce uma influência muito grande, e eu diria que isso não é ruim, porque tudo depende do que estamos falando: se é de um PT que carrega nele as referências das pastorais, das greves, da própria forma partido, do trabalho de base, ou de um outro PT que parece exercer um poder maior, que é justamente o PT negocial, o PT do realismo político. Estou vendo meninos jovens com um senso de realismo que é um contrassenso, e com uma falta de ousadia que é a expressão mais torta e constrangedora dessa perda de potência que está, por excelência, em todo o jovem. Se a potência tem que estar conosco até o fim da vida, imagine um jovem impotente achando que o máximo que ele pode fazer na política é equilibrar os índices de miséria para que os pobres saiam da extrema pobreza e possam pagar suas contas ou fazer valer seu emprego. Esse tipo de racionalidade contida e pouco ousada está marcando a juventude e esse é o problema.

O PT vira vítima e a sociedade se apega às vítimas — a prova disso é Jesus Cristo —, e o PT virou a grande vítima do Brasil, que tem origem na luta, porque a vítima carrega a imagem de um trabalhador sem dedo, boia-fria. Ou seja, o imaginário está riquíssimo para que se embarque na crença de que estamos caminhando na direção do mais ousado, e as pessoas podem ir em direção a esse imaginário que simula uma extrema ousadia, mas o que tende a acontecer é que nos apegaremos à expressão “bem-sucedido”, porque o PT foi muito bem-sucedido e porque expressou na sua essência o fenômeno de cooptação de classe.

Como você está acompanhando a Lava Jato? Quais são as implicações políticas da Operação e, nesse sentido, como avalia a posição de parte da esquerda e da militância petista, em se manifestar a favor do ex-presidente Lula no dia em que ele concedeu depoimento ao juiz Sérgio Moro?

Para a Lava Jato só resta uma coisa, que é o arbítrio nos dois sentidos do termo: um que a decisão esteja na mão do Moro, e outro que a decisão seja arbitrária, quer dizer, não tenha fundamento legal. O que resta da Lava Jato para que ela seja consequente em seu projeto é que o Lula seja impedido de se candidatar em 2018. Se isso não acontecer, a operação não terá valido a pena. Como eles não vão encontrar fundamentos legais para isso, eles vão recorrer a uma medida de exceção, de Estado de Exceção: vai fazer valer uma regra para o Lula, a qual não vai valer para os outros. Isso é o que vai impedir Lula de ser candidato, porque, caso contrário, Lula será candidato e terá grande chance de vencer se a burguesia reivindicar a sua eleição.

Lula cresce em termos políticos com a Lava Jato. Provavelmente terá a delação de Palocci, e a burguesia e o PSDB estão criando um circo em torno da delação dele, dizendo que quando ele fizer a delação, o projeto do PT vai terminar de ruir. De fato, é o que resta ao PSDB dizer, porque o depoimento do Lula serviu de palanque para o próprio Lula.

Acredito que o que Palocci vai dizer não vai criar nada de novo, e a Lava Jato não criará mais nada de novo, porque a devassa na política para produzir esse espaço de indeterminação já foi feita. Ou seja, se as pessoas já não têm mais expectativa na política, não vai ser mobilizando algum mal na política que vai fazer com que as pessoas dirijam sua atenção a ela. Por isso Doria é um nome perfeito, pois ele não é um político, mas um empresário que expressa o imaginário da juventude de hoje, de ser empreendedora. O que vai restar ao Judiciário e, ao Moro em especial, é uma atitude drástica e ilegal de modo que ele construa sua legitimidade na rua. É com isso que a Lava Jato conta, com o arbítrio do Moro e a legitimidade construída a partir desses agentes. Que a Lava Jato está sendo uma perseguição ostensiva ao Lula, não tenho a menor dúvida.

Como a senhora reage às delações da JBS, que envolvem denúncias contra o presidente Temer e Aécio Neves, e quais as implicações disso para a política daqui para frente, considerando que o presidente disse que não irá renunciar?

Não se sabe ainda o que será de 2018, porque Temer acabou de indicar dois nomes para o Tribunal Superior Eleitoral – TSE e essa movimentação produziu uma resposta por parte dos interessados em criar um cenário mais favorável para as reformas estruturais que o empresariado tem observado que o Brasil precisa. Ou seja, Temer está dando sinais de que não é o nome de consenso da burguesia, e, após a movimentação dele no TSE, o que se sentiu por parte daqueles que querem eleições indiretas é que o presidente teria feito uma ofensiva e estaria com chance de fazer cair por terra o processo que tramita no TSE. Se entendermos, paralelamente a isso, que a Lava Jato não está sendo exitosa em inviabilizar a candidatura de Lula em 2018, há um cenário em que o plano A, que consiste em tornar Lula inelegível, e o plano B, que é derrubar Temer para gerar uma eleição indireta, empurra a situação para um plano C, que é criminalizar Temer para fazer valer uma eleição mais favorável no ambiente do Congresso e viabilizar as reformas requeridas pelo capital. É importante destacar que esses planos A, B e C indicam que não há uma visão comum por parte da burguesia, mas, ao contrário, um desacordo entre o capital.

O “furo” da rede Globo, ao noticiar a gravação envolvendo o presidente Temer, não teve a força que a Globo tentou imprimir num modo espetaculoso de furo de reportagem com direito à interrupção da programação regular, porque efetivamente não existe conteúdo concreto que incrimine o presidente. A pergunta que fica no ar é: Por que a Globo estaria disposta a provocar tamanha instabilidade num cenário que já é extremamente instável e numa conjuntura em que só falta um ano para as eleições diretas? A resposta dessa pergunta parece ter algumas faces. Uma delas é que a JBS é uma das maiores patrocinadoras da Globo, que enfrenta uma crise brutal e, portanto, a Globo teve dois motivos, um de ponto de partida e outro de chegada, para veicular aquela notícia. O ponto de partida significa o seguinte: não veicular uma notícia da JBS, sua maior patrocinadora, significaria uma perda de lealdade com essa que é uma das maiores fontes de sustentação da Rede Globo, ou seja, uma empresa ligada à Friboi. O ponto de chegada seria criar um cenário favorável para que um segundo nome de possível candidato à presidência apareça e seja aquele capaz de espelhar o Brasil que está devastado politicamente e que anseia por uma espécie de herói que irá inovar a política. Esse segundo nome seria capaz de implementar as reformas que o capital quer no ritmo e radicalidade que quer, e seria capaz de criar um ambiente de modo a flexibilizar o Estado ainda mais, para que a própria rede Globo seja salva. Essa situação revela o poder que o capital tem, mesmo sem existir um acordo estável entre seus agentes.

A pergunta que fica no ar é: por que Aécio entrou nessa onda de quarta-feira? Porque a movimentação da JBS também tem uma face de respingar na disputa interna do próprio PSDB. A eleição indireta que se anunciava, e que ainda ronda, expressa duas movimentações subterrâneas. Uma delas é fruto da judicialização da própria política, que tem como seu precursor o ministro Gilmar Mendes, a qual irá criar uma nova arena para a política, que é a arena do Judiciário. Esse processo de judicialização da política vai forjando quadros no Judiciário para a disputa da República, e por isso surgem nomes como o da ministra Cármen Lúcia, de Jobim e de Moro. A outra movimentação indica que ainda há o nome de Doria como aquele que começa a corresponder à necessidade de que o presidente da República espelhe os anseios da sociedade. Doria é um empreendedor de sucesso, sem passado político, e tem um potencial, portanto é possível o PSDB encontrar um quadro que não seja o Aécio.

O que a esquerda deve fazer?

Diante dessa situação, o que a esquerda deve fazer? Ela não deveria ser a linha de frente da palavra de ordem do “fora Temer”. Ela deve permanecer gritando “fora Temer”, contando com o fato de que Temer, nas condições em que está, deve permanecer no posto em que está para que esse ambiente de impopularidade e de instabilidade persevere e se crie um ambiente para que as reformas não avancem. A esquerda não deve pegar carona nessas ondas espetaculares que vêm sendo produzidas, mas, ao contrário, disputar essas manifestações e gritar “fora Temer” para que ele fique com “o pé fora”. A esquerda deve tirar proveito disso não para fazer valer uma eleição indireta, mas para fazer valer um ambiente em que se inviabilizem medidas impopulares que já estavam difíceis de passar.

Por fim, algo que fica evidente e é lamentável, é que quem ainda é o alvo do imaginário popular é o chamado político. Esse ciclo que criminaliza a política e termina nele é o que explica uma inevitabilidade do capital em ter que lidar com o político, e é isso que está convocando o capital a renovar seus nomes via Judiciário, ou via sujeitos que não têm passado político. Isso é muito triste porque quem acaba sendo poupado é o principal agente dessa lambança, que é o empresariado. A disjunção entre interesse do capital e interesse público não está sendo levada em conta e questionada, e essa é a raiz do que acontece. Quando questionarmos isso, iremos ao ponto da questão, mas enquanto o problema do Brasil for o político, estaremos caindo na armadilha que o próprio capital quer.

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