Reverter o golpe

Movimento por anulação do impeachment cresce e cria comitês no Brasil e no exterior

Para militantes, só restituição do cargo à presidenta eleita resgataria democracia. Para Eugênio Aragão, Temer não é adversário: 'Ele assaltou o poder e deve ser tratado como inimigo'

divulgação / facebook

Aragão: “vivemos em uma sociedade escravocrata, pré-histórica em muitos aspectos”

São Paulo – A derrubada do impeachment de Dilma Rousseff é o único caminho para a saída dos golpistas do poder, o resgate do projeto aprovado e reeleito por 54 milhões de votos, o restabelecimento da democracia, a consolidação do estado democrático de direito e a garantia de que o povo vai poder escolher o futuro que quer para o país. Uma nova eleição, em meio ao avanço do golpe sobre os direitos, seria manipulada pelos golpistas para a sua permanência no poder. Este é o consenso defendido na noite de ontem (10) no primeiro ato-debate oficial realizado pelo Movimento pela Anulação do Impeachment.

O jurista e procurador da República Eugênio Aragão, que foi o último ministro da Justiça do governo Dilma, dividiu a mesa de debate com o jornalista e presidente do PCO, Rui Costa Pimenta, a enfermeira aposentada e militante do PT Edva Aguilar, que colaborou na execução e distribuição das ventarolas durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro com a estampa “Fora Temer”, e a artista, compositora e ativista digital Malu Aires.

Na plateia que lotou o auditório da Apeoesp (o sindicato dos professores da rede pública estadual), na Praça da República, região central de São Paulo, representantes de movimentos de mulheres, de moradia e da periferia da capital, do interior e de outros estados, além de integrantes do PT e do PCO – que organizou o evento –, e dirigentes do sindicato dos psicólogos, de professores e de sociólogos.

Participaram ainda representantes da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes). A ex-ministra de Políticas para as Mulheres e amiga pessoal de Dilma Eleonora Menicucci não pôde comparecer, mas enviou mensagem na qual destaca que as duas agradecem e apoiam a mobilização. Um nome conhecido presente foi o ex-deputado estadual petista Adriano Diogo.

Entre as estratégias do movimento para viabilizar a volta de Dilma estão a ampliação e intensificação de debates e a realização de grandes atos e manifestações em várias cidades do país para dar mais peso às pressões que alguns de seus militantes já vem fazendo sobre o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, onde estão parados processos que questionam o impeachment por não haver crime de responsabilidade. Além disso, levar a questão para cortes internacionais por meio de um pedido de liminar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica.

Estão sendo criados comitês em diversas cidades pelo país e até no exterior, os quais começam a agendar eventos. Nesta sexta-feira (13) à noite, haverá debate na sede da CUT, em Brasília, e em Belo Horizonte, a partir das 20h, no Restaurante do Ano, com a presença de Edva e Malu, na chamada Sexta Valente. Entre os próximos dias 27 e 29, elas estarão no 1º Encontro Internacional pela Democracia e Contra o Golpe em Amsterdam, na Holanda, com ativistas brasileiros que moram na Europa. 

É possível reverter o golpe?

Para Eugênio Aragão, é possível. “Se não tivéssemos condições de enfrentar a Globo, o Sergio Moro, Rodrigo Janot, Gilmar Mendes, não deveríamos estar aqui, e sim estar em casa, vendo novela”, disse. “Mais do que acreditar nisso, temos de ter fé de que é possível a partir de uma consciência revolucionária. Não se trata de religião. Nossa fé é uma fé ditada, que nasce de um processo histórico, e a gente sabe que as coisas só mudam na luta. Não existe nada que é dado de graça.”

Essa consciência revolucionária, segundo ele, é o caminho para uma democracia alternativa à atual, moldada para impedir que os excluídos cheguem ao poder. “Vivemos em uma sociedade escravocrata, pré-histórica em muitos aspectos. Para chegarmos à democracia que queremos, temos de restabelecer a que tínhamos. E para isso precisamos nos organizar e modular o nosso discurso. A gente tem todas as condições na proporção de força para assumir o poder que nunca assumimos”, afirmou, ressaltando que, no seu entender, a esquerda nunca esteve no poder, tampouco as massas. “As massas que fazem a crítica ao movimento, que oxigenam o movimento, nunca ditaram as políticas. Apenas tiveram parte nas suas discussões.”

Só a organização da sociedade, com participação das massas, pode trazer resultados, conforme o ex-ministro. Ele não acredita que medidas levadas às cortes internacionais possam surtir efeito. O Comitê de Direitos Humanos ao qual os advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recorreram contra os abusos na Operação Lava Jato é “apenas mais um elemento, uma pedra no caminho da reação”.

“Não podemos ter esperança porque o comitê não tem poderes importantes. Faz um parecer sobre a situação e faz recomendações aos governos. Se os governos não acatarem, o comitê nada pode fazer. No máximo declarar que o governo está descumprindo um tratado. Ponto. A menos que estejam em jogo interesses estratégicos de grandes potências centrais, o que não é o caso do Brasil.”

Diferenciando os conceitos de inimigo e adversário, Eugênio Aragão destacou que o governo Temer é inimigo. E que oposição cabe apenas quando a democracia está em vigor, o que não acontece agora. “Quando a democracia é derrotada, quem resiste é inimigo do golpe. Não temos de ser oposição a Michel Temer porque ele assaltou o poder e se comportou como inimigo, deve então ser tratado como inimigo.”

Ele conclamou os movimentos sociais, que participaram, mas não ditaram as políticas nos governos petistas, a relevarem as divergências para a derrubada do golpe. “A volta de Dilma é imperativo; é a partir daí que a gente volta a conversar, a definir o que queremos para revigorar a democracia. Não podemos vacilar agora. Num duelo, quem vacila leva o tiro.”

Ele lembrou episódios da ditadura, como a ocasião em foi humilhado e xingado por militares por não cantar o hino nacional quando se apresentou para o serviço militar. “Não podemos permitir que esse estado de coisas volte”.

E destacou  a diferença entre os setores progressistas e a ala conservadora que teve participação nos governos petistas, que apoiaram o golpe e que agora participam desse governo. “Somos como água e óleo. Temos de nos voltar para as massas, das quais nunca deveríamos ter nos afastado.

Chances totais

Rui Costa Pimenta também acredita na reversão do golpe. “Um movimento formado pelas bases tem “100% de chances de prosperar”, diz. Crítico dos governos do PT principalmente pelas alianças com setores da direita, pelo afastamento dos movimentos sociais e mais recentemente pela falta de empenho das lideranças da legenda para conter a instalação e o avanço do golpe, ele declara que não votou em Dilma – assim como todos do PCO, segundo diz. No entanto, defende a volta da presidenta eleita para a expulsão dos golpistas e o fim do avanço dos ataques à democracia e aos direitos.

Para ele, o momento é propício porque, conforme acredita, o governo golpista entrou em uma espiral da crise que aponta para o fracasso do golpe. “Há diversos choques entre o governo, o congresso e o Judiciário, em que a mídia golpista noticia que Temer tem o controle sobre o legislativo. E há até colunistas conservadores já escrevendo sobre a necessidade de o governo dar marcha à ré e fazer política igual à do PT para evitar o colapso total. É a oportunidade para reverter o impeachment. E se não fosse possível, este auditório não estaria lotado  a uma hora dessas, em início de janeiro. É grande a chance deste movimento formado pelas bases dos movimentos, sindicatos e partidos.”

Na avaliação de Pimenta, a maior parte da esquerda não dimensionou ainda a real amplitude do impeachment. “É um típico golpe de estado que avança rapidamente com medidas já aprovadas e outras em andamento para modificar profundamente as relações existentes no país, principalmente trabalhistas e sociais, que colocam em risco até mesmo a sobrevivência da esquerda na legalidade. A depender do plano que minimiza os riscos que o povo está correndo, a esquerda vai ficar à margem de um Estado que pode, inclusive, vir a sofrer uma intervenção militar.”

A grande questão, para ele, é a facilidade com que o impeachment foi assimilado por políticos e pela maioria da esquerda. “Ninguém poderia ter aceitado o golpe desse grupo conspirador. Não podemos recuar diante do golpe, que não se esgota com a retirada da presidenta reeleita com 54 milhões de votos, mas que nos leva a todos a um beco sem saída. Se não houver resistência, eles vão avançar e engolir  tudo o que foi conquistado com muita luta para derrubar a ditadura”.

Dúvidas

Edva Aguilar criticou seu partido e a maioria da esquerda em dar o golpe como fato consumado. “Grande parte das lideranças do PT e da esquerda não se empenham na luta pela restituição do mandato de Dilma. Por que não unir forças numa grande mobilização para anular o impeachment?”, propõe. Para ela, Dilma pode até apoiar um novo pleito, como tem manifestado publicamente, mas em respeito à democracia, e desde que  convocado por ela própria, presidenta legitimamente eleita e reeleita.

A militante leu uma carta em que questiona a postura dos integrantes do STF e do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em relação às ações que questionam o impeachment. 

“As perícias do Senado inocentaram Dilma das supostas acusações de crime de responsabilidade que a tiraram do cargo. Isso torna o impeachment ilegal, ilegítimo e inconstitucional. Por isso os ministros do STF, que são partícipes do golpe, devem acatar a ação que pede o cancelamento do impeachment que é um golpe contra o voto popular, que dá um pontapé na democracia e um sinal verde ao golpismo. Anular é importante para a democracia porque não há garantias de um processo eleitoral isento e livre.”

Processo “xexelento”

Uma das autoras de Crônicas da Resistência 2016 – Narrativas de uma Democracia Ameaçada, Malu Aires acredita que as pessoas estão finalmente despertando para a nova realidade. “Parece que estão começando a perceber a mesma coisa: que parece não haver mais leis, ou que as leis não são nossas, e que os brasileiros não têm mais direito a nada”, diz.

A ativista não cogita a possibilidade de eleições. “Não vai haver 2018 porque a democracia acabou em 2014. Se a Dilma voltar, se esse processo xexelento for anulado, com um país desse tamanho, muito maior que o Congresso e o STF, nós vamos fazer o que deveríamos ter feito desde o começo: governar junto com ela.”

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