Elói Pietá: ‘Maior problema das prisões é esse irracional combate às drogas’
Ex-prefeito de Guarulhos e coautor do livro 'Pavilhão 9: O massacre do Carandiru' diz que perseguição ao PT pelo sistema judiciário reproduz intolerância com setores mais pobres da sociedade
Publicado 18/01/2017 - 19h13
São Paulo – Prefeito de Guarulhos, na Grande São Paulo, por dois mandatos (de 2001 a 2008), Elói Pietá é autor do livro Pavilhão 9: O massacre do Carandiru (editora Scritta), em parceria com o jornalista Justino Pereira. A obra foi uma das utilizadas pela promotoria no julgamento do coronel Ubiratan Guimarães, apontado como o comandante da operação no presídio de São Paulo em 2 de outubro de 1992. Em 2001, o militar foi condenado por júri popular a 623 anos, mas recorreu em liberdade e foi absolvido em 2006 pelo Tribunal de Justiça. No mesmo ano, foi assassinado.
Pietá concorda com as análises segundo as quais os paradigmas e a filosofia da segurança pública continuam os mesmos da época do massacre. “Inclusive, passaram nossos governos, do PT, e nada mudou nessa área. O que houve foi uma ampliação do número de presídios e ampliação do número de prisões”, diz, em entrevista à RBA.
Ele traça um paralelo entre a realidade que encarcera as camadas mais pobres da população e a perseguição, pelo sistema judicial, do seu partido, o PT. “Quando você coloca como meta do Ministério Público e do Judiciário perseguir um partido, você repete o que acontece no dia a dia, que é perseguir os setores mais pobres da sociedade. Existe uma ideologia de que pobre tem que ser oprimido, e quando resolve oprimir um partido, o sistema vai aplicando métodos similares”, analisa.
A filosofia de segurança pública continua a mesma 25 anos depois do massacre do Carandiru?
Continua a mesma. Inclusive, passaram nossos governos, do PT, e nada mudou nessa área. O que houve foi uma ampliação do número de presídios, ampliação do número de prisões e transferência dos presos em delegacias de polícia, presídios chamados de cadeias, para os novos presídios. Aumentou muito o número de prisões e o Judiciário continuou com a morosidade dele, com a injustiça de manter 40% de presos sem julgamento definitivo.
Os avanços que houve em termos de construção de presídios e presídios federais não alteraram a situação. Paralelamente, as organizações criminosas surgiram dentro dos presídios, o PCC e o Comando Vermelho, na primeira metade da década de 90. Progrediram enormemente e são um poder paralelo. Assim como nas áreas de periferia e de favela têm o poder no tráfico de drogas, têm o poder paralelo dentro das prisões. Hoje atuam também fora delas. O cara que sai da prisão continua vinculado à organização, e nem sempre porque quer, mas porque teme.
O sr. concorda que a principal responsável pela situação ter chegado aonde chegou é a guerra às drogas e a lei que prende jovens por pequeno tráfico?
Claro. O maior problema das prisões é esse irracional combate às drogas, que não são responsáveis apenas pelos que são presos por serem traficantes, mas também pelos que são presos por serem homicidas, assaltantes. Enquanto a questão das drogas não for resolvida com outro sistema, enquanto a política em relação às drogas não for mudada radicalmente, não só no Brasil, mas no mundo, esse negócio vai ficar irresolvível.
E cada vez mais terá que se construir mais prisões, e vai aumentar a criminalidade, porque isso é um sistema reprodutor da criminalidade. Portanto, é um sistema podre. Primeiro, do ponto de vista legal; em segundo lugar, sob o aspecto judicial; terceiro, policial; e quarto, do ponto de vista carcerário.
Ou faz uma mudança radical no sistema ou fica como estão fazendo, cada vez mais agravando a extensão das penas, o que significa que vão se criar mais problemas além dos que o sistema não resolve.
O deputado Chico Alencar (Psol-RJ) disse que o mais grave é que essa política de encarceramento que provoca a morte das pessoas conta com respaldo talvez da maioria da opinião pública. O sr. concorda?
Sim, porque é a ideologia dominante. As classes que dominam a economia, a comunicação de massa, a cultura, essas classes têm vários padrões que colocam na cabeça da população. Um dos padrões muito forte hoje é que o Estado não presta, o que presta é o sistema privado. A segunda coisa que colocam na cabeça das pessoas é que bandido se torna bandido por ser um cara mau, não tem nenhum motivo social que leva as pessoas a isso. Portanto, é o caráter do indivíduo, e caráter não tem solução a não ser excluindo-o do meio social. Terceira coisa, quanto mais matar esses indivíduos sem caráter, melhor para a sociedade. Espalharam isso e isso pegou na mente da maioria como uma mancha quase indelével.
Bandido bom é bandido morto…
Pois é. Então isso faz parte do arcabouço ideológico que foi incrustado na sociedade pelos setores ricos. E a maioria do Ministério Público e do Judiciário entrou nessa ideologia. O que está acontecendo com uma parte dos partidos políticos, especialmente com o PT, é um pouco a transferência para o campo político daquilo que já fazem há muito mais tempo no campo de repressão aos pobres. Por exemplo, o cara fica preso indefinidamente sem ter sido condenado. O cara fica preso por comercializar drogas, mas o cara que comercializa cigarro, bebida alcoólica e outras drogas lícitas, esses são cidadãos normais. Como você criminaliza inteiramente as drogas, o que acontece é o que acontecia nos Estados Unidos na época da Lei Seca.
Até a maconha, que é uma droga, digamos, mais leve, o próprio Ministério Público é contra qualquer legalização, o que já acontece em outros países. O Brasil está sob o domínio de ideias conservadoras, reacionárias, que não resolvem os problemas. E quando dirigimos o país, não fizemos essa luta ideológica.
Quando diz que o que acontece com o PT “é a transferência para o campo político daquilo que já fazem há mais tempo no campo de repressão social” o sr. se refere à Lava Jato?
Quando você persegue, coloca como meta do Ministério Público e do Judiciário perseguir um partido, você repete o que acontece no dia a dia, que é perseguir os setores mais pobres da sociedade. Se o sistema atropela direitos escritos na Constituição ou nas leis penais ou de processo penal, isso é feito cotidianamente com as classes pobres. Existe uma ideologia de que pobre tem que ser oprimido, e quando resolve oprimir um partido, o sistema vai aplicando métodos similares. Existe um paralelo do processo autoritário.
Hoje o autoritarismo está indo também para o campo da política. Esse sistema autoritário sobre as classes pobres, esses sistema judicial, policial, prisional e midiático sobre as classes pobres, nós não conseguimos debelar quando fomos governo, porque abdicamos da luta ideológica. Preferimos apenas a luta econômica, e agora esse mesmo sistema se volta contra nós por motivos econômicos, mas com toda essa consolidação ideológica na sociedade que a gente não combateu. O que agora está se agravando, com essas dez medidas contra a corrupção que aqueles procuradores querem fazer, o que é trazer mais para cima aquela selvageria que já se faz com os debaixo.
O que acha do uso das Forças Armadas nos presídios, medida anunciada por Michel Temer?
Eu estou com o Guaracy Mingardi (cientista político e secretário de Segurança Pública de Guarulhos na gestão de Pietá). O mais certo para resolver esse problema emergencial é colocar a Força Nacional, que vem das PMs e tem mais experiência na área de presídio. Na hora da crise vêm os porta-vozes do governo e anunciam novos planos. As Forças Armadas não têm experiência nessa área. Não resolveram o problema das favelas, do tráfico e do crime, não vão resolver nas prisões também. Mas se a emergência tem que ser atendida, o melhor é trabalhar com a Força Nacional.
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