Líderes religiosos tiram proveito da polêmica sobre aborto, diz pesquisadora

Professora da UFRJ entende que líderes religiosos tentam forçar candidatos a assumir compromissos futuros em torno de temas morais, como o aborto

Pregação eletrônica: religiosos usam tecnologia para difundir boataria equivocada sobre Dilma e o aborto (Foto: Reprodução)

São Paulo – A primeira semana do segundo turno da disputa presidencial parece ter aberto uma corrida sem precedentes pelo voto evangélico. A boataria em torno do aborto foi apontada pela campanha de Dilma Rousseff (PT) como fator para explicar o crescimento de Marina Silva (PV) na reta final – fortemente votada entre evangélicos e religiosos em geral – e a queda da ex-ministra.

Caso a avaliação esteja correta, é o caso de se perguntar qual o tamanho deste eleitorado e de que maneira se comporta. Como lembrou o deputado Ciro Gomes em entrevista à Rede Brasil Atual, trata-se de um tema que envolve “questões religiosas, questões morais, éticas, sanitárias, emocionais, psicológicas”. Em suma, “questões terríveis.” Ou seja, não é apenas o eleitorado evangélico que se vê tocado pelo assunto na hora de definir o voto.

De todo modo, alguns fatos lançaram holofotes para a força de segmentos evangélicos na disseminação de informações na reta final do primeiro turno. O principal envolveu o pastor Paschoal Piragine Júnior, de Curitiba. O video em que ataca Dilma, falando que querem enfraquecer a família e criminalizar os que são contra a “prática da homossexualidade”, foi visto por três milhões de pessoas no YouTube. E foi distribuído em DVDs Brasil afora.

Maria das Dores Campos Machado, professora do Núcleo de Pesquisas em Religião, Gênero, Ação Social e Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a influência dos líderes religiosos sobre a vida política.

Ela indica que várias igrejas têm como base social um público feminino de baixa escolaridade. “Não se chega a essas mulheres se não se tiver uma ligação com essa liderança religiosa, que é realmente fundamental. O pastor acaba sendo uma correia de transmissão das ideias políticas.”

De acordo com os dados do Censo 2000 do IBGE, os evangélicos representavam, no início da década, 15,6% da população. Pensando em termos eleitorais, um segmento nada desprezível. Levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) indica que a bancada evangélica terá crescimento na legislatura a ser iniciada em 2011. Nas eleições deste mês, foram eleitos 63 deputados e três senadores evangélicos, crescimento de 23 cadeiras na comparação com o Congresso atual.

Mas isso não significa consenso. “O mundo evangélico é de extrema disputa de poder. Um universo muito pragmático onde as disputas são muito acirradas e levadas para fora do templo”, lembra a professora da UFRJ.

Embora o aborto seja um raro tema com poder unificador dos fiéis, isso não se dá entre os líderes religiosos. É preciso entender a profunda fragmentação e o funcionamento de cada uma dessas denominações religiosas. A Assembleia de Deus, à qual se integra Marina Silva, não tem uma posição coesa em torno de candidatura nas eleições. Há pastores com diferentes posições.

A Igreja Universal, por outro lado, é vista como uma instituição de caráter mais centralizado, de discurso mais homogêneo. A essa denominação se filia o senador reeleito Marcelo Crivella (PRB-RJ), que esta semana participou de reunião da coligação de Dilma.

O encontro teve como finalidade detectar problemas e afinar discursos. Crivella indicou que trabalhará junto às lideranças para desfazer os boatos em torno de Dilma. Um deles indica o vice da petista, Michel Temer, como um satanista que provocará a morte da ex-ministra para ficar com o poder. “Agora, com mais tempo, um pouquinho mais de bom senso, os candidatos conseguem expressar a verdade e as coisas vão voltar ao normal”, argumenta o senador.

Compromissos futuros

Na tarefa política de fazer as coisas voltarem ao normal, é difícil dimensionar qual será o tamanho da ajuda dada por outros líderes político-religiosos a Crivella. A base evangélica eleita para o Congresso é bem dividida em termos partidários. Embora o PRB, governista, tenha levado nove das  66 cadeiras de evangélicos, há parlamentares em partidos da oposição e há os que se alinhem sempre com o eleitorado, independentemente da sigla de filiação. Há, dentre esses líderes, os que aceitam discutir o aborto em caso de fetos anencéfalos, e há os que não aceitem discutir o tema sob nenhuma perspectiva.

“Descriminalização não é o mesmo que transformar o aborto em método contraceptivo. Precisamos fazer uma discussão clara sobre o tema, fora do momento eleitoral, para que as pessoas não fiquem suscetíveis a informações que deturpem as ideias”, lamenta Maria das Dores Campos Machado, que considera que a discussão acalorada e distorcida terá como vítimas as mulheres que todos os anos precisam utilizar o sistema de saúde após recorrerem a um aborto.

A professora da UFRJ avalia que os líderes religiosos fazem uma disputa política como a de qualquer outro setor, ou seja, querem chamar os candidatos a compromissos futuros. “Não nos iludamos. Os líderes religiosos não são ingênuos. O que querem é forçar uma negociação, forçar que sejam ouvidos neste momento.”

Se for este o caminho, funcionou. Dilma ficou em uma saia-justa, pressionada por dois lados opostos a assumir uma posição definitiva. De um lado, setores do PT que entendem que o melhor seria descriminalizar o procedimento. De outro, os que querem uma condenação enfática do aborto. A posição original da candidata, que era a defesa de uma ampla discussão da sociedade sobre o tema, virou presa fácil daqueles que desejam dar outro rumo a esta informação.

O adversário José Serra (PSDB), que em 1998 assinou norma no Ministério da Saúde legalizando o aborto em caso de gravidez resultante de violência (estupro), esta semana preferiu resumir em uma frase seu pensamento a respeito, sem explicar exatamente o que quis dizer e, portanto, sem entrar em detalhes. “Nunca disse que era a favor do aborto, porque sou contra o aborto.”

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