Volta à Guerra Fria

Doutrina Trump: Alinhamento aos Estados Unidos ou interesse nacional

Hoje, é plenamente factível o cenário de uma intervenção em um país vizinho ao Brasil. As declarações de Trump internacionalizam de vez o conflito na Venezuela e América Latina. O Oriente Médio é aqui

Reprodução

Resultado do alinhamento absoluto do Brasil ao Estado americano: quem não se dá ao respeito não merece respeito

O mundo e a América Latina em alerta máximo. Trump começou a semana bradando que a Coreia do Norte receberá “o fogo e a fúria” das bombas atômicas americanas “como o mundo jamais viu” e terminou ameaçando a Venezuela de “opção militar” direta, visto que “[a Venezuela é nossa vizinha, e nossas tropas estão por todo o mundo”. Muitos analistas internacionais punham em dúvida até esta semana a existência de uma “doutrina Trump”. Não deve haver mais dúvida. Parafraseando Shakespeare em Hamlet, é “loucura sim, mas tem seu método”.

Nossa geração – homens e mulheres que não viveram na pele a experiência da Segunda Guerra Mundial – começa a viver uma encruzilhada trágica da história. No fundo, adotando a loucura como estética de ridículo político (Hitler e Mussolini já fizeram uso do mesmo expediente), o presidente americano propõe a saída da clássica da guerra no capitalismo como solução da crise do modo de produção. Para tanto, estão aí o aparato bélico descomunal, a superioridade tecnológica do complexo industrial-militar dos Estados Unidos. As prédicas mais sombrias de Paul Baran, Paul Sweezy, Ernest Mandel, Michael Kridron, em diversos matizes teóricos (às vezes conflitantes) inspirados em Rosa Luxemburgo, da economia armamentista como componente macroeconômico indispensável na restauração da reprodução do capitalismo parecem se confirmar.

As declarações de Trump internacionalizam de vez o conflito na Venezuela e América Latina. O Oriente Médio é aqui. A iminência de uma guerra civil interna naquele país, que já era muito grave, centuplica-se pela possibilidade de, pela primeira vez na história, uma ocupação militar americana estourar nas barbas das fronteiras do Brasil. Diante de uma situação tão grave, a posição de assumir uma neutralidade no conflito, defendida recentemente por certa esquerda equivocada, tornou-se insustentável. Mas milhões de vezes pior é a situação do governo Temer, um anão diplomático. Por irrelevância do governo, o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, desembarca na próxima semana para “consultas” na Argentina, Colômbia, Chile e Panamá, “esquecendo o Brasil”. Este o resultado do alinhamento absoluto do Brasil ao Estado americano: quem não se dá ao respeito não merece respeito. 

É terrível a posição apequenada do Brasil, que adquire expressão concreta na linha de nossa diplomacia nos fóruns internacionais. No caso da Venezuela, o governo brasileiro adotou uma oposição tão frontal ao governo venezuelano que deixou de ser um interlocutor. Deixamos de exercer um papel mediador na região, tradicional deste o Barão do Rio Branco, irremediavelmente perdido enquanto perdurar a atual orientação confrontacionista no Itamaraty. 

Antes de tudo, é preciso reconhecer que a Venezuela está imersa em uma conflagração política radical, há alguns anos, cujo episódio da constituinte é o desdobramento mais recente. Não conseguiremos entender corretamente como se chegou até este ponto sem revisitar a história pregressa. Neste aspecto, vale a pena escavar de uma entrevista do líder oposicionista e duas vezes candidato a presidente da república, Henrique Capriles em 21/06/2015, no jornal Folha de S. Paulo. Naquela época, líder oposicionista testemunhava o esforço do governo da ex-presidenta Dilma e do Brasil para mediar o conflito. Afirmava que foi procurado pelo então chanceler brasileiro Luiz Alberto Figueiredo para ter um canal direto de comunicação com o governo brasileiro e que conseguiu participar da reunião dos chanceleres da UNASUL porque o Brasil garantiu sua presença. 

Entre os governos do PT e o governo Temer, realmente mudou a política externa brasileira. O Brasil deixou de se pensar como o grande país que é. Em depoimento à BBC, o ex-ministro Celso Amorim compara os dois tempos: “A política externa teve objetivamente uma queda brutal. Você não percebe mais a presença do Brasil. Eu me recordo que, quando presidia reuniões do Mercosul, eram entrevistas sem parar, jornais, canais de TV, sempre tinha uma coisa nova, algo palpitante, ainda que fosse para criticar. Agora, não tem nada. Dá impressão que você está cumprindo tabela. O Brasil estava presente em quase tudo que aconteceu de importante no mundo, da Rodada de Doha às questões da reforma da ONU, passando pelo Oriente Médio, Teerã, integração da América do Sul… Hoje, o que eu vejo é uma coisa passiva. Nos melhores momentos é passiva. Nos piores, é desastrada.”

Dito isto, cabe a pergunta: – A quem interessa esta mudança da política externa brasileira? A resposta é absolutamente cristalina: o Brasil renegou a linha da política externa autônoma, independente, soberana e altiva, que tanto nos trouxe prestígio internacional. Assumimos um alinhamento acrítico com os Estados Unidos. Parafraseando Chico Buarque, voltamos àqueles tempos em que o Brasil “falava grosso com a Bolívia e fino para os Estados Unidos”. 

Mudar a política externa foi um dos principais motivos do golpe do impeachment da presidenta Dilma. Se houver parâmetro de comparação, o momento da política externa assemelha-se a 1965, começo da ditadura, quando o marechal Castello Branco enviou tropas brasileiras à República Dominicana seguindo ordens expressas do presidente Lyndon Johnson. Voltamos aos maus presságios da “doutrina” de Juracy Magalhães”, pronunciada quando o político baiano era embaixador em Washington – “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

No caso da Venezuela, as ações e a retórica de Temer, do ministro Aloysio Nunes e de outros porta-vozes do governo, sequer vem tendo o cuidado de manter algumas cautelas do governo FHC. No livro “Diários da Presidência” (vol. II, p. 794), assim se refere o ex-presidente a respeito de uma visita de Hugo Chávez ao Planalto, em dezembro de 1998, poucos dias depois de eleito pela primeira vez e antes de tomar posse em Caracas: “almocei com o presidente eleito da Venezuela, que tentou dar um golpe anos atrás (…) veio com disposição de ajudar o Brasil, acha que a Venezuela tem que entrar no Mercosul. Quer que a Petrobras e a PDVSA funcionem em conjunto. Enfim, veio com os melhores propósitos de ampliar o relacionamento entre Venezuela e Brasil.”

Fernando Henrique não era alinhado nem simpático ao regime venezuelano, ao qual tecia críticas, várias bastante duras. No entanto, de fato, sem escamotear diferenças, ele mantinha uma janela de interlocução que a linha diplomática do governo Temer perdeu completamente. Tanto é assim que, em 2002, no final do mandato, o ex-presidente autorizou a Petrobras a enviar navios com gasolina àquele país, acossado por uma longa greve dos funcionários da PDVSA (Lockout, que ficou conhecido como “Paro Petrolero”). Fica a lição: em política internacional, conversar não significa aderir. 

A partir deste exemplo, constatamos que houve um retrocesso qualitativo da política externa brasileira. Na verdade, Temer não retroagiu aos tempos dos governos tucanos de FHC, aos tempos do “neoliberalismo progressista” (Nancy Fraser), da “terceira via” (Anthony Giddens.) e do “consenso de Washington” (John Williamson). Pior, o ponto de referência girou para os primeiros anos da ditadura militar, comprovando, mais uma vez, as analogias entre os dois golpes. 

Esteve presente desde sempre entre os principais motivos do golpe do impeachment um propósito de realinhamento de nossa política externa. Este realinhamento, especialmente do lado tucano – partido que ocupa a cadeira do Ministério das Relações Exteriores do governo Temer -, visava abandonar qualquer prioridade estratégica relativa à construção dos BRICS e fomento de relações sul-sul.  O interesse maior é reatar os “laços carnais” com os Estados Unidos.

No mundo ideal dos tucanos, representativo da parte financeira e associada da burguesia brasileira, Hillary Clinton governaria os Estados Unidos. Em seguida, constituiria dois novos blocos econômicos: em médio prazo, o acordo Transpacífico (Trans-Pacific Partnership), com tratativas em curso e assinado no governo Obama. No outro diapasão hemisférico, depois, não tardaria a hora do acordo Transatlântico (Transatlantic Trade and Investment Partnership), envolvendo Nafta, União Européia e Mercosul. Sucede que, para surpresa geral, venceu Donald Trump (em 11/ 11/2016). A vitória de Trump, eleito com forte discurso nacionalista, derrubou a estratégia dos think tanks democratas, formulada em resposta geoeconômica à crise de 2008, de dobrar a aposta na globalização e constituir mais dois novos blocos econômicos.

Trump tirou o suporte. Assim, ao sul do equador, em matéria de política externa, o projeto de subordinação cosmopolita dos tucanos se assemelha à imagem de um pintor surpreendido com a brocha na parede cuja escada fora retirada por algum Deus irônico. Sobrou, por atávico complexo de vira-latas dessa gente, o mais vil dos servilismos – a imitação rebaixada da truculência do Império.

O governo ilegítimo brasileiro já se acostumou a passar por dissabores internacionais. Cinismo e sorrisos amarelados não faltam. Nenhum chefe de Estado se interessa em posar ao lado de Temer, reconhecido patinho feio em cúpulas internacionais. A lista de exemplos é inumerável. Eis alguns: 1) reunião dos BRICS na Índia; 2) visita à Rússia; 3) visita à Noruega. Para completar, ano e meio de governo, e nenhuma visita internacional importante aportou em Brasília – Angela Merkel, por exemplo, esteve na Argentina e voou para o México. Quem semeia ventos golpistas colhe os frutos da irrelevância internacional.

Certamente, o melhor exemplo de subordinação da política externa seja o caso da atuação no conflito venezuelano. De uns dias para cá, o ministro Aloysio Nunes participou de reuniões na OEA (antes se avistou com o Secretário de Estado Rex Tillerson), no Mercosul, em Lima. Em comum, todas as declarações do ministro punham mais lenha da fogueira, talvez interessadas em adular a parcela da opinião pública alinhada ideologicamente à direita.

Fosse somente uso inadequado da retórica, já seria comportamento recriminável a um chanceler. Mais que isso, porém, o alinhamento insano a uma das partes no conflito perde de vista o interesse nacional, por dois motivos coligados: 1) está em curso na Venezuela uma clássica operação de desestabilização, comandada pelo Departamento de Estado americano; 2) o conflito chegou ao ponto de uma guerra interna de baixa intensidade, podendo evoluir para uma guerra civil aberta, seguida de intervenção militar americana. 

Não é de hoje, a Venezuela desempenha um papel estratégico para os Estados Unidos. Escreve Marcelo Zero: “A Venezuela está sentada na maior reserva provada de petróleo do mundo. São 298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo do mundo. Este petróleo está a apenas 4 ou 5 dias de navio das grandes refinarias do Texas. Em comparação, o petróleo do Oriente Médio está entre 35 a 40 dias de navio dos EUA, maior consumidor de óleo do planeta.”

Em princípios dos anos setenta, em uma nota dirigida à CIA em que aconselha sobre os meios de debilitar o governo de Salvador Allende, Henry Kissinger escreveu sucintamente uma frase que se tornou famosa: “há que sangrar a economia”. Da declaração se deduz que os problemas da economia chilena, às vésperas do golpe de Pinochet, não eram apenas internos. Não se tratavam apenas de reações cegas de mercado ante a incompetência do governo, mas de atos coordenados, interna e externamente, de política cambial e monetária, lockout e desabastecimento. 

A fórmula, testada em inúmeras partes do mundo, mais uma vez, se aplica à Venezuela. Quando Chávez era vivo e os preços do petróleo ainda em alta, já assim falava o ex-secretário de Estado Lawrence  Eagleburger: a relação entre o presidente Hugo Chávez e o povo venezuelano “funcionará somente se a população da Venezuela continuar a ver no seu governo alguma capacidade para melhorar os seus padrões de vida. Se em algum momento a economia começar a ir mal, a popularidade de Chávez começará a decrescer. Estas são as armas que temos contra ele, e que deveríamos usá-las. Isto é, as ferramentas econômicas para fazer com que a economia venezuelana piore, de maneira a que a influência do chavismo no país e na região caia a pique… Tudo o que possamos fazer para que a economia venezuelana se encontre numa situação difícil está bem feito”. 

Evidentemente, os problemas da economia venezuelana não se restringem às ações coordenadas de desestabilização. A fragilidade estrutural da ultradependência da cotação internacional dos preços do petróleo – que a experiência dos governos bolivarianos não logrou reverter -, por consequência, sempre resultou em permanente conflito de classes, ora aberto, ora latente, entre ricos e pobres. Até aí não há novidade, Celso Furtado já a anotava os impasses do conflito distributivo em 1974.

A partir da eleição de Hugo Chávez, instituindo a V República e derrotando a república oligárquica, em dezembro de 1998 – cuja linha vem sendo mantida com crescentes dificuldades por Maduro -, mudou o papel do Estado na operação do conflito distributivo dos excedentes da riqueza petroleira.

Chávez soube detectar magistralmente o cerne da luta política venezuelana. Aproveitou o conflito distributivo entre os setores diretamente envolvidos na cadeia produtiva da economia do petróleo e a imensa maioria da população no sentido de tomar o partido dos eternos excluídos na distribuição dos excedentes. As estruturas de poder da república oligárquica estavam todas organizadas para drenar a parte do leão da economia pela superexploração estritamente econômica, mas também (a questão é de suma importância) pelo acesso, quase estamental, a oportunidades de qualificação técnica na gerência da indústria do petróleo (monopolizado por certa classe média treinada nas universidades e no exterior). Desta maneira, o discurso de racionalidade econômica propagandeado pelo antigo regime era falso. O que havia, de fato, era uma economia política historicamente montada a favor dos sofisticados (e americanizados) habitantes dos bairros luxuosos de Caracas, em detrimento das poblaciones subproletarizadas das favelas. O desenvolvimento político e social do processo de luta, distributivo e de classes, resultou no grave impasse atual. Trata-se de um impasse que só será resolvido pelas escolhas soberanas do povo venezuelano.

Em anos recentes, aconteceram três intervenções militares diretas dos Estados Unidos próximas ao Brasil, destronando governos no Panamá (1989), Granada (1983) e Haiti (2004). Foram acontecimentos terríveis havidos em países da América Central. Agora, é plenamente factível o cenário de uma intervenção em um país vizinho, maior economicamente e muito mais estratégico. Teremos a combinação de uma crise humanitária e os canhões do Império apontados para o território nacional. Será uma catástrofe. A doutrina Trump não permite coluna do meio: alinhamento aos Estados Unidos ou interesse nacional.

Lindbergh Farias é senador pelo PT-RJ e Jaldes Meneses é professora de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

Leia também

Últimas notícias