mujica

‘Vale a pena lutar para que as pessoas passem tempo no planeta da melhor forma possível’

Em entrevista, 'Pepe' faz um balanço dos últimos cinco anos e comenta desafios à frente do Uruguai e da América Latina

Hugo Ortuño/efe

José Pepe Mujica transferiu a faixa presidencial neste domingo para Tabaré Vázquez

Montevidéu – Pepe presidente. Dito assim, parece um slogan eleitoral. Mas José Mujica conclui neste 1º de março seu mandato como presidente e é mais Pepe do que jamais foi. Tem meio século na profissão e teve a oportunidade de conhecer e interagir com mandatários dos mais diversos, desde Ronald Reagan até Raúl Alfonsín, passando por Fidel Castro, Mihkail Gorbachev, Lula, François Mitterrand, Sandro Pertini, Michelle Bachelet e Carlos Menen. Mas Pepe não é do mesmo molde; é decididamente outra coisa. O único conhecido que se assemelha em espírito democrático e simplicidade é o argentino Arturo Illia, mas este estava longe do arsenal teórico e da experiência política e vital de Pepe.

No último dia 11 de fevereiro, às 10h, chegamos – a jornalista suíça Camilla Landoböe, o fotógrafo Oscar Bonilla, o assessor da entrevista, Federico Fasano Mertens, o diretor de imprensa da presidência do Uruguai, Joaquín Costanzo, e eu – à simples e florida chácara de Pepe, a poucos quilômetros de Montevidéu. O presidente nos recebeu vestindo uma camisa de manga arregaçada e fora da calça de boiadeiro, sapatilhas com cordões meio atados e gorro de beisebol. Sentamos-nos sob uma árvore; ele pega uma garrafa de água térmica e começa a fazer chimarrão para todo o grupo. De vez em quando interrompe para pedir a Bonilla que empreste tabaco e papel para enrolar um fumo.

Mas ainda que essa descrição o sugira, não há nada de pose em Pepe Mujica. Ele respira, transpira, transmite autenticidade, demonstrada em sua vida e sobretudo no que faz, no que diz. Não conheci políticos, menos ainda presidentes, que se expressem com tanta liberdade sobre as limitações e problemas de sua gestão, sobre os próprios partidários e aliados, com uma linguagem que é uma mescla de intelectual profundo e homem da rua. Pepe é um desses raros marxistas que compreenderam o materialismo humanista de Marx e fazem esforços para atualizá-lo. Em todo caso, um homem culto e profundamente sincero. Pode-se estar de acordo ou não com o todo ou a parte do que expressa, mas é impossível não se maravilhar frente a um personagem assim.

Vamos começar pelas questões formais: como lhe chamar? De presidente, senhor Mujica, José…

Pepe… e nos chamamos de “você”.

Obrigado, Pepe. Vamos começar, então. Para um homem como você, que lutou nos anos 70 por mudanças políticas, econômicas e sociais rápidas, definitivas; por uma revolução, e pagou por isso, entre outras coisas com 15 anos de prisão, o que significa, anos depois de todas essas experiências, ser presidente eleito, estar à frente de uma aliança de centro-esquerda, com companheiros que têm ideias distintas e com uma responsabilidade de governo?

Nós homens, como qualquer coisa viva, amamos muito a vida. Então, queríamos um mundo perfeito. Depois, sofremos bastante, mas por falta de velocidade, porque nos pegaram (risos), não porque fomos heróis. Mas então começamos a valorizar outra vez o papel que tem a vida, nada mais e nada menos… Vale a pena lutar para que as pessoas tenham um pouco mais de comida, um teto melhor, mais saúde, uma educação melhor, e que passem todo o seu tempo sobre o planeta da melhor forma possível. Mas nada é mais bonito, mais apreciado que a vida… E isso é assim no capitalismo, foi assim no feudalismo, foi assim para o homem primitivo… e o será no socialismo. Não há nada como a vida… Isso é que aprendemos nesses anos, que a vida é o primeiro valor e, em todo caso, o segundo valor é a sociedade.

Por isso, agora andamos devagar, mas firmes, tentando promover transformações que são relativas; lentas, porque devem ser consensuais; que não são definitivas, porque a única coisa definitiva é a morte…

O que você diz pode ser entendido, traduzido, como uma adaptação à realidade…

As pessoas nunca terminam de se adaptar à realidade, que é tão complexa… É uma forma de ver o mundo… Alguns o veem por meio de uma equação religiosa, outros meramente ideológica… Eu me sinto cada vez mais próximo de velhos filósofos como Sêneca, Epicuro…

Heráclito…

Sim… Claro, há convicções, uma trajetória intelectual à qual uma pessoa não vai renunciar, mas não devemos ser esquemáticos… Penso que o homem, como animal que é, pelo hard drive que temos do lado de dentro, é gregário; não é um felino, é antropologicamente socialista. Em que sentido? Precisa da comunidade para viver; não pode viver isolado, tem uma grande dependência do grupo social. Viveu mais de 90% da existência humana em forma primitiva; não separava o seu do meu. A propriedade, a competição e tudo isso vieram depois. O desenvolvimento da civilização foi formando sua individualidade; a noção acabada de indivíduo monopolizador é moderna, capitalista. Nós somos capitalistas por formação histórica, porque vivemos nesse momento de desenvolvimento da civilização.

Há alguns dias li uma frase sua: “Vamos ter guerra até que a natureza nos obrigue a ser civilizados”…

Sim, por esse caminho estamos indo. O capitalismo, como um todo, é contraditório. De um lado estão a injustiça, a desigualdade, as guerras; mas esse egoísmo que leva dentro de si é um motor formidável, que desenvolveu ciência, tecnologia, tudo isso, certo? O capitalismo nos deu muitas chicotadas, mas nos deu quarenta anos adicionais de vida no último século… O que você acha? Agora parece ter dado tudo de si; o lógico é que o socialismo democrático o substitua, mas os tempos da história são longos. O capitalismo se desenvolveu durante três séculos sem democracia política.

Certa vez você disse algo como “não devemos lamentar os problemas; temos de enfrentá-los.”

Sim, a questão é encontrar a maneira…

Justamente, uma vez em um governo como o que você preside, como se resolvem essas contradições?

Vai-se negociando o que é possível, tentando contribuir para que a sociedade seja o mais equitativa possível, intervindo permanentemente com políticas sociais, promovendo a organização dos trabalhadores para que discutam o preço de suas mãos. Porque, definitivamente, o grande elemento distribuidor na sociedade, pelo menos na atual, é o salário. Não é o único, e além disso tem um limite, porque se coloco demais a mão no bolso de quem tem que investir, ele não investe e ao final tenho menos para dividir… Veja o resultado humano e prático que tiveram os experimentos apressados, “definitivos” do socialismo: ao final tiveram menos para dividir.

Também foram experimentos antidemocráticos…

Claro, porque quando tudo é reduzido, você tem de cair na ferocidade repressiva… Mas o pior desse socialismo é a democracia… Você começa a depender não dos produtores, mas dos capatazes… O capitalismo tem os problemas que conhecemos, mas sempre há algo para aprender, até do adversário. É necessário aprender da inteligência, não da estupidez.

Até onde a Frente Ampla avançou e o que falta fazer?

O problema é que temos uma herança, como é normal. A partir da década de 40 – as datas podem ser arbitrárias – a democracia no Uruguai foi perdendo a força; caímos em clientelismos, em utilizar o Estado para colocar muita gente, gente demais, e assim fomos tirando dele sua competitividade. Por um “protecionismo” em relação a quem trabalha, criamos uma categoria de funcionários praticamente intocáveis que têm seu futuro assegurado; entrando no Estado, dentro de quarenta anos se aposentam e ninguém pode tocar neles, faça o que fizerem. O Estado perdeu vigor, e obviamente os sindicalistas defendem essas “conquistas”, e assim se transformaram em defensores do status quo que atava as mãos do Estado… Tocar esse ponto no Uruguai é como fazer uma revolução… Então, ficamos no meio do caminho. A Frente tentou dar vigor para as conquistas sendo menos demagógica, tentando usar e fazer as coisas um pouco melhor, mas temos de transformar o Estado, fazer essa revolução. Temos os instrumentos, mas devemos nos colocar de acordo: além da energia, das comunicações etc., o Estado tem em suas mãos o principal banco do país; 60% do movimento bancário estão nas mãos do Estado e nós (da Frente Ampla), vamos levantando a bandeira “é necessário nacionalizar os bancos”.

Para que nacionalizar os bancos? O banco estadual tem de funcionar “com a cara e coragem”, de tal forma que o banco privado não tenha outro remédio a não ser aceitar as regras do jogo. Esse é um dos desafios que temos pela frente.

Junto com o Chile, e diferentemente da Argentina, no Uruguai os crimes da ditadura dos anos 70 gozaram de uma lei de caducidade, plebiscitada…

Creio que o povo uruguaio teve medo… e com bom humor, em alguma medida, decidiu “engolir os sapos”. Difícil, duro, mas priorizou a tranquilidade.

Mas, depois, a Corte Suprema declarou que alguns aspectos dessa lei de esquecimento, por assim dizer, eram inconstitucionais. Como se lidou com esse assunto no seu governo?

O problema é complexo. Por um lado, os criminosos não vão se auto-acusar; por outro, deixaram muito poucas pistas, eu diria que nenhuma, para que a Justiça seja plenamente aplicada e com isso teríamos de lidar por muito tempo. Verdade e justiça podem ser contraditórias e os problemas estão na divisão política e nas brigas, nos ódios que isso gera na sociedade quando se prolonga com o tempo. Veja na Argentina, começaram bem, mas depois foram fazendo uma sujeira tão generalizada e massificada que passaram trinta anos e há pontas soltas por todos os lados… No Uruguai não… Tivemos violência e ditadura, mas as pessoas decidiram esquecê-la, por assim dizer. Veremos como essa questão da Corte Suprema será resolvida institucionalmente.

Por último, falando de justiça e não apenas a respeito dos crimes da ditadura, o Uruguai funciona com um sistema jurídico que está alinhado com o passado, mas não com as mudanças necessárias no presente. Se você, no Uruguai, quiser colocar um imposto sobre a terra, sobre a concentração da terra, o impedem declarando-o inconstitucional. Como em todo mundo, e sempre na história, a jurisprudência foi pensada e instalada pelas classes dominantes, os estratos conservadores. Temos de lidar com isso; não o transformamos (o sistema jurídico). Nós (da Frente Ampla) há tempos gostaríamos de ter promovido uma reforma constitucional porque se você não muda os instrumentos jurídicos, depois você encontra essas contradições, como um freio formidável. A Justiça, essa senhora que colocam com uma venda nos olhos e uma balança nas mãos… isso não existe, porque a justiça reflete o peso das classes que dominam uma sociedade. Os instrumentos jurídicos estão dentro da história, e a história é uma luta de classes… Tudo está, portanto, influenciado pela política. Creio que não existe ato mais político que uma revolução, e todas as revoluções têm sido fundadoras de direito, fonte de jurisprudência. Ou seja, a classe ou as classes que predominam são as que estabelecem as leis. Isso é o que necessitamos agora, mudanças democráticas, isto é, aprovadas pela maioria; mas, de fundo, que reflitam e, ao mesmo, permitam as mudanças que o Uruguai precisa no presente.

Marx estaria de acordo com você.

Quer dizer, eu estou de acordo com Marx…

Leia a íntegra da entrevista no Opera Mundi

Carlos Gabetta é jornalista e escritor argentino