Uruguai vota projeto que garante matrimônio homoafetivo

País já tem legislação avançada em relação ao restante da América do Sul, mas movimentos querem igualdade e pedem fim de todas as formas de discriminação

Jovens participam de ato a favor do casamento igualitário e despenalização do aborto em Montevidéu (Fotos: Leo Carreno/RBA)

Montevidéu – A Câmara dos Deputados do Uruguai vota nesta terça-feira (11) o projeto de lei do casamento igualitário. O texto ainda precisa passar pelo plenário no Senado, mas a expectativa é otimista: ainda no primeiro trimestre de 2013, os casais hétero e homoafetivos deverão ter os mesmos direitos.

Atualmente, casais homoafetivos já podem realizar uniões civis no Uruguai graças a uma lei em vigor desde 2008. Desde 2009, também podem adotar crianças, possibilidade ainda negada para lésbicas, gays e transexuais no Brasil, salvo por decisões judiciais isoladas.

Mas os uruguaios querem mais e pedem a aprovação do matrimonio igualitário para que todos tenham os mesmos direitos, e não precisem, como no Brasil, “judicializar” suas uniões. Para que a união civil possa ser consolidada, é preciso que os casais estejam há pelo menos cinco anos ininterruptos juntos. “Se eu quero começar uma vida com uma pessoa, não quero ter de esperar para oficializar isso”, aponta o diretor da organização não-governamental Ovejas Negras, Diego Sempol.

Além do matrimônio, a nova lei vai permitir que homossexuais usem os mesmos mecanismos dos casais hétero para se separar e escolher o sobrenome dos filhos. Além disso, a mudança de sexo de uma pessoa casada, permitida aos transgêneros também desde 2009, deixa de ser um motivo de injúria e passa a ser apenas mais uma razão para o pedido de divórcio.

As discussões sobre o casamento igualitário naquele país começaram há cerca de dois anos e envolveram diversos grupos sociais. Hoje, o movimento pela diversidade é o que consegue mobilizar o maior número de pessoas no país. A última Parada Gay uruguaia reuniu 30 mil pessoas, número muito expressivo para um país com população de 3,4 milhões de habitantes.

O tema da Parada era “‘Sim’ ao matrimônio igualitário e ‘Não’ a todas as formas de discriminação”. Sempol explica que a mudança de paradigmas na atuação do movimento ainda no início dos anos 2000 foi responsável pelo fortalecimento da causa. “O movimento de diversidade sexual nos anos 90 era permeado pela política de identidade e com visão um pouco liberal: só me mobilizo para aquilo que implicar diretamente a identidade lésbica, trans, gay”, contextualiza.

“Em 2004, foi feita uma grande discussão para trabalhar os temas com intersetorialidade. Começamos a expor o princípio de que, em um país de terceiro mundo, nós não podíamos nem de longe seguir o modelo estadunidense liberal de luta. Teríamos de entender a complexidade e pensar um projeto de emancipação mais completo. E isso foi criando um polo em que progressivamente o movimento estudantil e afro se uniram, e feministas também. E hoje esse grupo é substantivo.”

Sempol: “Se eu quero começar uma vida com uma pessoa, não quero ter de esperar para oficializar isso"

A integração das lutas por igualdade evitou que o movimento se fragmentasse, como no Brasil, onde, por exemplo, as lésbicas sentem a necessidade de criar uma parada própria por não se sentirem contempladas na Parada LGBTT. “Aqui, o princípio foi construir uma agenda com o enclave da diversidade que está muito bem amparada na concepção da intersetorialidade. Então lésbicas, trans e gays nos mobilizamos por nossas particularidades, mas sabendo que nos discriminam por sermos gays, afrodescendentes, pobres ou desocupados e por isso temos de trabalhar a complexidade do fenômeno da discriminação desde o princípio. E isso nos fez trabalhar muito articulados com as feministas, com as organizações afrodescendentes, com as centrais sindicais, movimentos estudantis. E olho por olho, temos um bloco informal do ponto de vista político que se articula em torno de todas essas demandas”, explica o diretor das Ovejas Negras.

Apesar da agenda pró-direitos iguais no Uruguai, a equipe da RBA não viu durante os sete dias que passou em Montevidéu, capital e maior cidade uruguaia, demonstrações públicas de afeto entre casais homossexuais pelas ruas.“É uma mudança que está ocorrendo. Pouco a pouco deixamos de ser discriminadores. Em alguns lugares, pode-se ver pessoas nas ruas, se beijando. À medida que tivermos

"As pessoas têm boa aceitação do discurso antidiscriminação, mas na prática é diferente", afirma o deputado Sebastian Sabini

leis mais democráticas, que as pessoas vejam que não são discriminadas, essa mudança será mais fácil. Então a lei pretende ser uma desculpa para discutir sobre diversidade, sobre a não discriminação para ter uma sociedade mais igual e inclusiva”, acredita o deputado e relator da lei do casamento igualitário, Sebastian Sabini, da Frente Ampla.

“De alguma forma esse projeto também pretende pôr na mesa essas fobias, a homofobia, a lesbofobia e a transfobia, que estão presentes e se manifestam em violências simbólicas e materiais muito fortes. Especialmente sobre a população trans, que vive em situação de pobreza, que é excluída da família e cuja única atividade que conseguem exercer é a prostituição. É um problema muito grande”, afirma o parlamentar.

Esse ano, cinco transexuais foram assassinadas no país, o que assustou a população. Não há registro de outros casos do tipo no Uruguai em anos anteriores. “Isso não era um problema, nem remotamente. Estamos muito preocupados para saber o que é. Se é um psicopata, se é um grupo organizado, ou se é um incremento da violência social. Mas isso não acontecia antes”, diz Sempol.

Mesmo sem a violência física motivada por homofobia a lei é defendida em função de outras manifestações, como insultos, perseguição na escola e no trabalho. “Essas pessoas têm dificuldades de inclusão social por razões claramente discriminatórias. E se elas interrompem os estudos, será muito mais difícil que façam algo no futuro que não seja a prostituição”, aponta Sabini. No Brasil, segundo levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), 266 homossexuais foram assassinados no país em 2011. 

Assim como no caso do aborto, o apoio da Frente Ampla é apontado como fundamental para que a agenda homossexual tenha ganho força. O partido aglutina as principais forças de esquerda do país, tem a maioria nas duas casas legislativas e conta, entre seus membros, com o atual presidente, José “Pepe” Mujica. “Se tivéssemos uma esquerda dividida não seria possível. A frente permite levar essas questões adiante e discutir e muitas pessoas que pensavam de uma forma mudam de posição por causa dos argumentos”, explica o deputado frenteamplista.

Mas, dessa vez, diferentemente da discussão do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo também é apoiado por parlamentares de outros partidos, e deve ser aprovado facilmente nas duas casas. A baixa influência da igreja é apontada como principal razão para que a discussão seja pautada na resolução do problema da desigualdade e não em argumentos de cunho religioso. “A população apoia. As manifestações contrárias são basicamente no âmbito privado. Em geral, as pessoas têm boa aceitação do discurso antidiscriminação, mas na prática é diferente”, afirma Sabini. 

“Os negros são 10% dos uruguaios e 50% deles são pobres. Na população como um todo, a pobreza é de 14%. Então, somos racistas. Mas todos dizem que reprovam isso. É muito mais difícil para uma trans ser professora ou dirigir um ônibus ou trabalhar em outra coisa a não ser como prostituta. Não há um discurso racista ou homofóbico entre as pessoas, os políticos, mas se vê na realidade que somos uma sociedade desigual”, exemplifica o deputado. “A lei, como sempre, é só o primeiro passo. Ajuda a discussão. É um avanço em um contexto de mudança”, acredita.

Também convicto de que a criação de leis é, no Uruguai, a forma de suscitar o debate político, o líder das Ovejas Negras já projeta as próximas etapas. “Uma vez concluída essa parte legislativa, vamos começar a brigar por políticas públicas.”

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