Governo de Cristina vai à Suprema Corte com duas ações contra decisão pró-Clarín

Chefe de gabinete da presidência argentina afirma que decisão de barrar aplicação da Lei de Meios coloca Judiciário como 'braço jurídico do grupo ilegal'

Buenos Aires – Poucas horas depois de sofrer um revés, o governo argentino apresentou duas ações à Suprema Corte contestando a decisão da Câmara Civil e Comercial de estender a vigência de uma medida liminar que mantém o Grupo Clarín a salvo da exigência de se adaptar à Lei de Meios Audiovisuais. Um dos pedidos, apresentado pela Chefia de Gabinete da Presidência da República, pede que os magistrados derrubem imediatamente a validade da cautelar proferida em outubro de 2009 a favor do grupo midiático.

No outro, a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca), órgão regulador da legislação, pede uma rápida revisão da decisão de véspera, novamente classificada como “vergonhosa” pelo presidente da entidade, Martín Sabbatella. A posição do Judiciário foi proferida horas antes do 7D, o dia em que o Executivo esperava dar andamento a um dos pontos mais importantes do novo marco legal, que visa à quebra de monopólios e oligopólios.

O chefe de gabinete, Juan Manuel Abal Medina, afirmou que com a decisão de ontem “acabamos de confirmar que a Câmara é o braço jurídico do grupo ilegal”, e acrescentou que os juízes estão impedindo que os argentinos possam “construir um país cada vez mais plural”.

Em Buenos Aires, antes da decisão não se notava uma enorme expectativa em torno da data, seja pelo dilúvio que se abateu sobre a capital argentina nas últimas 24 horas, seja pelo debate exaustivo sobre o tema. Agora, porém, é possível que o ato marcado para domingo em frente à Casa Rosada sirva para expor o desagrado com a situação criada pelos juízes que o governo indicava ter postura favorável ao Clarín.

Nas ruas, observa-se, além de conversas eventuais de boteco, os tradicionais “afiches”, cartazes que são colados em postes, edifícios vazios, muros e espaços publicitários argentinos. As mensagens pregam o fim do quadro de monopólio e dão um “tchau” ao Clarín, e a esta altura estão ficando deterioradas pela chuva ou já foram substituídas por novas, este tradicional esporte argentino, praticado mais que o tênis e o futebol somados, todos os dias da semana.

“A obrigação do Grupo Clarín de cumprir a lei será um feito importante não apenas para o governo de Cristina Kirchner, mas para o Estado argentino”, adverte o professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, Edgardo Mocca, para quem vive-se uma data fundamental para a história argentina. Mocca entende que a presidenta tem a oportunidade de contrariar uma prática comum no país ao enfrentar os poderes econômicos. “Como costumou ocorrer na Argentina, a democracia termina perdendo posição para os poderes de fato.”

Os outros 20 grupos que têm licenças de rádio e TV em excesso continuam tendo como prazo para apresentar um plano de adequação à meia-noite de hoje. O presidente da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca), Martín Sabbatella, transformou-se em figura frequente no noticiário, e tem sido o único do governo a se posicionar sobre a Lei de Meios esta semana. 

Sabbatella disse que vai pessoalmente entregar na segunda-feira (10) a notificação dos meios de comunicação que não apresentem os planos de adequação. “Vamos atuar no marco da lei, absolutamente em paz e respeitando, como sempre o fizemos, as instituições da democracia”, afirmou dias antes.

Ontem, Sabbatella disse que a decisão pró-Clarín é uma “vergonha” e expõe como o Judiciário argentino não está pronto para enfrentar os interesses das grandes corporações. Uma série de resoluções publicadas no Boletim Oficial da Argentina deu conta de como serão os procedimentos de “desinvestimento”, como tem sido chamado o trâmite que vale a partir de meia-noite de hoje para os outros 20 grupos. 

A normativa mais importante, anunciada no último dia 4, indica que um órgão ligado ao Ministério do Planejamento fará uma avaliação de valor de todas as licenças de rádio e TV e dos bens imprescindíveis para o funcionamento delas. A partir disso, a chamada “transferência de ofício” será realizada a partir daquelas de menor valor, até que se atinja os limites estabelecidos pela Lei de Meios. 

A Afsca terá de colocar todas as concessões novamente em licitação, e as empresas terão 15 dias, a partir da notificação, para assumir a titularidade das licenças em questão, além de se comprometerem a manter a prestação do serviço de comunicação normalmente até que o novo concessionário tome posse.

Trata-se de um momento fundamental para o cumprimento de dois dos principais aspectos da Lei de Meios. A primeira é desconcentrar os veículos em mãos privadas. A segunda é que, com as concessões de volta em suas mãos, o Estado tem como dar sequência à divisão do espectro eletromagnético em três partes iguais. Segundo o novo marco legal, o espaço por onde navegam as ondas de rádio e TV será compartilhado entre veículos particulares com fins de lucro, particulares sem fins de lucro e públicos.

“A diversidade é importantíssima. Nosso país, igual que o Brasil, tem uma geografia muito extensa. E a Argentina tem realidades climáticas completamente diferentes. Há muitas comunidades que vivem de diferentes maneiras, que têm seus sotaques locais”, afirma David Furland, representante da Associação Argentina de Trabalhadores das Comunicações no Conselho Federal de Comunicação Audiovisual (Cofeca), órgão que auxilia a tomada de decisões da Afsca, e do qual é também vice-presidente “O que ocorre hoje é que há muitos lugares do país em que as pessoas querem ouvir as vozes de sua terra natal, saber o que ocorre em sua cidade. Estamos muito acostumados com a ideia de que tudo o que ocorre em Buenos Aires é notícia. Quem sabe para as pessoas do interior não é tão importante que exista um problema com o metrô de Buenos Aires. Aqui é um problema, mas que não seja isso o que todos os canais de notícia ficam mostrando.”

Impasses jurídicos

A Lei de Meios fez se cruzarem as três instâncias do Judiciário e os interesses do Executivo. Tudo teve início em outubro de 2009, poucas semanas após a sanção do projeto aprovado pela Câmara e pelo Senado. No dia 26 daquele mês, o Clarín obteve uma decisão liminar do juiz federal Edmundo Carbone suspendendo a aplicação do artigo 161, o que prevê a apresentação de um plano de adequação.

O novo marco jurídico, que substitui o inventado pela ditadura na década de 1980, estabelece limites de concentração de mercado. Entre os mais importantes está o que diz que nenhum grupo de comunicação pode chegar a mais de 35% da população – o Clarín chega a 41,88% com suas rádios AM e FM, 38,78% com as emissoras de TV aberta e 58,6% dos assinantes de TV fechada. Outra questão é que só se pode ter 10 licenças no total, e o Clarín ostenta 25. Quanto aos canais fechados, a lei permite um acúmulo de até 24, contra 237 do maior grupo midiático argentino.

O Clarín demorou nove meses para apresentar sua posição após obter a liminar, o que arrastou o processo ao longo de 2010. O governo de Cristina foi à Corte Suprema na tentativa de derrubar a decisão anterior, mas não conseguiu. Não saiu, porém, de mãos abanando, já que os magistrados manifestaram ao juiz de primeira instância que uma decisão provisória não poderia ficar se arrastando por muito tempo.

Frente à negativa do juiz então responsável pelo caso de determinar um prazo, a Câmara de Apelações fixou em 36 meses o limite de vigência da cautelar. Isso levou a um novo recurso do governo, que em 22 de maio deste ano obteve nova decisão favorável da Suprema Corte. Os ministros indicaram que o estabelecimento de um intervalo de três anos é razoável e permite a tramitação do processo. Do contrário, seria distorcida a natureza da decisão cautelar, provisória e precária. Com isso, a Afsca decidiu estender a todos os veículos o prazo dado ao Grupo Clarín, que caduca neste 7D.

No último mês, a Suprema Corte voltou a afirmar que o juiz precisa rapidamente tomar uma decisão. Horácio Alfonso, que há pouco assumiu o caso, prometeu ser breve na determinação de sentença. Na visão da Câmara Civil e Comercial, isto é suficiente para que se estenda a validade da liminar até que ocorra uma determinação em caráter definitivo.

Edgardo Mocca concorda que o governo pode ter se apegado excessivamente à data, mas não vê possibilidade de que o Executivo se veja obrigado a dar um passo atrás futuramente. “É uma lei que já tem um nível de conversação, um grau de mobilização social e uma discussão parlamentar. Estamos às vésperas de uma decisão judicial a favor da constitucionalidade da lei. Terminou-se, eu diria, a etapa do direito cautelar, ou seja, a ideia de que um recurso justo e democrático, como é a liminar, possa se converter em um circuito de sistemática obstrução da lei.”

Temperatura elevada

Os últimos quatro dias foram de temperatura em constante elevação na peleja entre governo e Clarín, até chegar ao ápice com a decisão de ontem. Sem quórum há meses, a Sala 1 da Câmara Civil e Comercial teve vários possíveis nomes protestados esta semana pelo Executivo. 

Na terça-feira, os juízes Francisco de las Carreras e Gabriela Medina tiveram as nomeações protestadas por supostas ligações pessoais com o Clarín. No dia seguinte, o governo se opôs às indicações de Francisco Recondo e de Francisco de las Carreras. A Recondo acusam de haver favorecido o conglomerado em uma decisão, e De las Carreras teve uma viagem a Miami paga por uma empresa que teria entre os sócios dirigentes do Clarín.

Com tudo isso, o maior conglomerado midiático jogou toda a carga de seu noticiário contra o governo, acusando se tratar de um fato inédito em tempos de democracia. Em editorial publicado antes de decisão de ontem, o jornal do grupo lembrou que a separação de poderes é fundamental para o funcionamento da República, acusando a gestão de Cristina Kirchner de descumprir um preceito firmado pelas constituições nacionais desde o século passado. Pode ser um caminho para que, vislumbrando a impossibilidade de adiar os efeitos do 7D, passe-se a construir a argumentação para levar o caso à Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a base de “denegação de justiça”.

“É um argumento fraudulento”, rebate Mocca. “Isso, que parece tão confuso e tão inexplicável, é a revelação de um estado de coisas na democracia argentina que obviamente é uma pendência. Toda a questão judicial, que vem da ditadura, segue aí. Uma parte dos juízes postergou o quanto pôde o julgamento dos responsáveis pelo terrorismo de Estado. De modo que falar do Poder Judiciário argentino como uma espécie de lugar celestial, de competência, igualdade e imparcialidade, é forçado. É tentar mostrar um Poder Executivo avançando sobre o Poder Judiciário, quando se trata justamente de o Executivo defender a aplicação de uma lei votada.”

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