Tribunais em julgamento na Europa

Homenagem à egípcia Marwa El Sherbini, morta em Dresden. Alexander Wien, acusado (Foto: Lysippos/Wikicommons) Pode um tribunal julgar e ser julgado ao mesmo tempo? Pode. É o que está acontecendo […]

Homenagem à egípcia Marwa El Sherbini, morta em Dresden. Alexander Wien, acusado (Foto: Lysippos/Wikicommons)

Pode um tribunal julgar e ser julgado ao mesmo tempo?

Pode.

É o que está acontecendo em três julgamentos que ora correm na Europa.

O primeiro é o julgamento de Rodovan Karadzic pelo Tribunal Internacional de Haia, na Holanda (o mesmo em que o governo golpista de Honduras denunciou o Brasil por intervenção em seus assuntos internos!).

Karadzic, ex-presidente de um país que hoje não existe mais, fruto da fragmentação da antiga Iugoslávia, é acusado de crimes de guerra, entre eles o de genocídio contra a população muçulmana, durante a Guerra da Bósnia-Herzegovina, entre 1992 e 1995.

Essa guerra, além de uma das maiores desde a Segunda Guerra Mundial, foi uma das mais sujas que a Europa conheceu, dentro de sua história recheada de guerras sujas. Envolveram-se nelas sérvios, croatas e muçulmanos residentes na região. Houve atrocidades de todos os lados, e não faltaram contradições e alianças espúrias. Nacionalistas gregos apoiaram os sérvios. Ressalte-se: ao contrário da América Latina, na Europa “nacionalista” quer dizer “de direita”, e implica xenofobia, intolerância, perseguição, até racismo. Neo-nazistas alemães apoiaram os croatas, porque a Croácia tinha sido uma aliada da Alemanha na Segunda Guerra. Karadzic, cuja vida – desculpem o  termo – está recheada de picaretagens, quis “limpar” a Bósnia Herzegovina de sua população muçulmana. É acusado de ter promovido massacres inomináveis, como o de 8 mil muçulmanos – entre eles muitas mulheres e crianças – em Srebrenica. Mas suas tropas estavam ganhando. Só foram detidas quando a Otan realizou maciços bombardeios aéreos contra elas. Motivo alegado: o massacre de civis. Motivo não reconhecido publicamente: a Sérvia apoiava os sérvios da Bósnia, e a Sérvia, tradicional aliada da União Soviética e hoje da Rússia, é vista como inimiga pela Otan, cujo objetivo continua a ser cercar (e talvez derrotar) Moscou.

Depois de uma vida na impunidade, em que se tornou guru de medicina alternativa, com base numa energia colhida até no Espírito Santo, Karadzic foi preso em 2008, em Belgrado, e entregue ao tribunal de Haia. Agora, preso, ele se recusou a nomear advogado e se recusa a comparecer às sessões do julgamento, que começaram na semana passada. O tribunal está perplexo, e os parentes das vítimas exigem uma resposta imediata dos juízes, com ou sem Karadzic no banco dos réus.

Segundo julgamento: o holandês Heinrich Boere está sendo julgado na cidade alemã de Aachen, perto da fronteira com a Bélgica e a Holanda, por crimes de guerra. Hoje com 88 anos, Boere tinha 18 quando o exército nazista invadiu a Holanda. Foi enviado à frente russa, mas retornou como mebro de um esquadrão especial das SS para combater a resistência holandesa. Participou, confessadamente, pelo menos de três assassinatos em 1944. Depois da guerra foi preso, mas fugiu, e se refugiou na Alemanha. Condenado à morte na Holanda em 1949 (pena depois comutada para prisão perpétua) Boere nunca foi deportado para lá nem preso na Alemanha. Somente agora, mais de 60 anos depois de seus crimes, foi preso e está sendo julgado. Bom, pode-se dizer, antes tarde do que nunca. Sim, mas por que tão tarde?

De longe o julgamento de maior impacto no momento é o de Alexander Wien, de 28 anos, em Dresden. Em caso já abordado aqui no blog, ele primeiro insultou uma jovem egípcia num parque, Marwa El Sherbini; depois, num tribunal, foi condenado a pagar uma indenização de 780 euros (por que 780 ao invés de 790, até hoje não sei). Apelou, alegando que não podia insultar quem não era um ser humano – para ele, uma mulher muçulmana não poderia pertencer a essa espécie. No julgamento do recurso, não se sabe como, ele levou para dentro da sala uma faca de 18 cm. e com ela matou a vítima, com 16 ou 18 facadas. O marido, também egípcio, tentou salvá-la, mas um policial, ao adentrar o recinto, vendo dois homes em luta, atirou nele, num evidente engano induzido por preconceito.

Alex Wien, ou W., como é tratado, pois a lei aqui proíbe a divulgação do nome de um reú antes da sentença final (e ninguém acha que isso é um atentado à liberdade de imprensa), é chamado de um “russo-alemão”. Nasceu na Rússia, de ascendência alemã, e vivia na cidade de Perm, de 1 milhão de habitantes. Ali, desajustado, veio para a Alemanha, onde continuou a ser um “desajustado”.

A impressão que se tem é que, em busca de uma identidade, assumiu o que a “possibilidade alemã” lhe oferecia de pior, uma opção neo-nazista. Construiu um personagem para si, e deixou-se tomar por ele. Já em 2006 ele ameaçou uma outra jovem com a tal de faca. Pergunta-se: com todos esses antecedentes, por que não houve medidas de segurança no tribunal, quando ele pode entrar armado? O detector de metal estava quebrado, desativado, ou o quê? Dessa acusação de negligência o tribunal de Dresden não vai se livrar tão cedo.

Agora, no julgamento do assassino, medidas excepcionais de proteção estão sendo tomadas. 200 policiais guardam o recinto. O réu fica numa redoma de vidro à prova de balas. Entra coberto por um boné que mais parece um capuz, com óculos escuros. Teme-se de tudo: desde vingança até um ataque terrorista do tipo Al-Qaeda.

Tudo bem. A segurança do réu deve ser mantida. Somos contra linchamentos, seja para que lado for. Mas, como pontuou a revista Der Spiegel, ecoando um sentimento geral, ao assassino está se oferencendo uma precaução que foi negada à sua vítima.

A promotoria pediu prisão perpétua. É o caso de torcer que sim, e que o tribunal de Dresden nunca esqueça a injustiça do caso de Marwa.

 

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