Minha luta: uma bomba relógio

Direitos autorais da autobiografia de Adolf Hitler expiram em 2015. Sem restrições, temor é de que grupos neonazistas inundem livrarias com reedições

Governo da Bavária, a quem cabem os direitos da obra até 2015, impediram qualquer reedição até agora (Foto: Montagem a partir da reprodução de capas/Rede Brasil Atual)

Há uma bomba relógio armada para explodir no dia 31 de dezembro de 2015. Nesta data os direitos do livro “Minha luta” (Mein Kampf, em alemão), de Adolf Hitler, cairão em domínio público. Qualquer um poderá editar ou traduzir o livro. Teme-se que haja um festival de edições por parte da extrema-direita e de grupos anti-semitas.

O livro foi publicado em dois volumes. O primeiro foi escrito na prisão, em 1924, e saiu em 1925. Hitler cumpria pena pelo chamado “Golpe da Cervejaria”, uma tentativa fracassada de derrubar o governo do Estado da Baviera e depois o de Berlim. Condenado a cinco anos de prisão, Hitler cumpriu menos de um e obteve o perdão. Já em liberdade, escreveu o segundo volume, em 1925, publicado em 1926. Basicamente o livro conta a formação e a trajetória política do próprio Hitler e o ideário do Partido Nazista.

Inicialmente o sucesso do livro foi muito relativo. Era vendido a 12 marcos, um preço caro para a época. Em 1925 vendeu 9.473 exemplares; em 1926, 6.913; 5.607 em 1927 e 3.015 em 1928.

Mas em 1929 os nazistas, já então liderados por Hitler, obtiveram suas primeiras vitórias eleitorais relevantes na Alemanha. As vendas subiram para 7.669 e, em 1930, com a primeira edição popular a 8 marcos, elas pularam para 54.086. Com a subida ao poder nacional em 1933, as vendas foram para a estratosfera. Hitler detinha os direitos do livro, inicialmente, 10%; a partir de 1933, 15%. A venda do livro foi seu principal meio de subsistência de 1925 a 1933, e ele acabou tornando-se milionário. Uma curiosidade: como Al Capone, Hitler não pagava o imposto de renda; em 1933 sua dívida com o erário público era da ordem de mais de 400 mil marcos. Mas Al Capone acabou na cadeia e Hitler no governo, quando então sua dívida foi anulada.

Em seu testamento, redigido pouco antes de seu suicídio no fim de abril de 1945, Hitler deixou os direitos do livro para o Estado da Baviera, que desde então sempre se recusou a reeditá-lo ou a permitir novas edições. Entretanto, assinale-se, o livro está disponível em sites na internet, inclusive em sua tradução para o português, lançada pela Editora Globo na década de 30.

Diante da perspectiva de o livro cair, em seis anos e meio, no domínio público, o Instituto de História Contemporânea de Munique anunciou sua intenção de organizar uma edição crítica, com notas e comentários sobre sua história e significado. Também entrou em negociação com o governo bávaro para obter a permissão legal. Stephan Kramer, secretário geral do Conselho Central Judaico da Alemanha, apoiou a iniciativa do Instituto, dizendo que se faz necessária uma tal edição, diante da possibilidade de ele tornar-se um ícone e um símbolo para os movimentos neonazis com a liberação de seus direitos.

No Brasil

Henrique Bertaso, dono da Editora Globo, de Porto Alegre, comprou os direitos de tradução para o português do Brasil em 1936, quando de uma viagem à Europa com fins editoriais. A obra fez parte de uma política de grandes traduções daquela editora, liderada por ele e por Erico Veríssimo, que era uma espécie de conselheiro editorial, uma política que revolucionou o mercado brasileiro de então, onde predominavam as traduções do francês. Nem Bertaso nem Erico eram nazistas ou sequer tinham qualquer simpatia pelo nazismo.

Pelo contrário: Erico, sobretudo, notabilizou-se logo por assumir posições claramente antinazistas e antifascistas, atraindo a ira da direita e do clero católico conservador, que o acusaram de “comunista” e “pornográfico”. E em suas memórias o escritor gaúcho evoca como ele e Bertaso passeavam acabrunhados pela rua da Praia, em Porto Alegre, diante do pacto entre Hitler e Stalin para repartir da Polônia. Nunca vi a primeira edição do livro, somente a segunda. Consta que naquela (eis algo a verificar) Erico e Bertaso incluíram diversos livros de autores judeus entre os anúncios de outros livros que se punham ao fim do volume.

A questão espinhosa

Fica uma questão espinhosa com a qual sempre me debati e que agora também entrego aos leitores. Diversas vezes fui questionado se eu seria favorável à proibição do livro, por sua pregação racista e totalitária. Sempre reconhecendo a pertinência da pergunta (inclusive diante da nossa Constituição, que considera um crime a discriminação racial ou sua propaganda), sempre respondi que, à proibição, eu preferia (como quer agora o Instituto de Munique) ver uma instituição universitária realizar uma edição fundamentada, anotada e comentada daquela tradução, que incluísse a história do próprio livro e sua trajetória no Brasil. Isso porque, eu comentava também, em matéria de proibição de livros a gente começa com Minha luta, num gesto que teria o apoio de muita gente sensata, mas nunca se sabe onde se vai chegar, com o apoio de muita gente insensata. Mas de todo modo, fica a questão para os leitores.

Leia também

Últimas notícias