Hitler, de corpo ausente

Mostra é oportuna por enfrentar o vazio da ausência do corpo do líder nazista (Foto: Divulgação) A exposição “Hitler e os alemães: nação e crime” (“Hitler unD die Deutschen: Volksgemeienschaft […]

Mostra é oportuna por enfrentar o vazio da ausência do corpo do líder nazista (Foto: Divulgação)

A exposição “Hitler e os alemães: nação e crime” (“Hitler unD die Deutschen: Volksgemeienschaft und Verbrechen“) despertou, é claro, polêmicas, elogios e decepções.

A principal decepção ficou por conta de um artigo de David Crossland, no Spiegel Internacional: a exposição, embora bem articulada, “não traz nada de novo”. O que seria esse “novo”. Para Crossland, seria uma confrontação do povo alemão com as máscaras do passado, sim, mas também com as máscaras do presente: o que daquela fascinação que Hitler produziu nas massas dos anos 30 e 40 ainda pode estar presente, mesmo que em resíduo, hoje? Mais precisamente: neste hoje em que preconceitos culturais, religiosos e nacionais voltam à tona, ainda disfarçadamente com preconceitos raciais – só que agora contra islâmicos, muçulmanos e turcos, sobretudo.

Não sei se não seria pedir demais.

Os curadores da exposição e os diretores do Museu Histórico Alemão (Deutsche Historiches Museum) se esforçaram ao máximo para evitar alusões nostálgicas àquela época ou qualquer sombra de culto à persona de Hitler. Não há o que duvidar de suas intenções. Também não há que duvidar sobre a oportunidade da mostra. De nada adianta deixar esse “cadáver” chamado Adolf Hitler enterrado em algum fundo de armário. Oportuna, portanto, a mostra.

Mas…

Pois é, aí vem o “mas”, que nada tem a ver com as intenções dos articuladores da exposição.

O mas parte do fato de que ela se apoia num vazio histórico. Compreensível, mas vazio. Hitler se matou, o corpo sumiu, seu bunker onde passou os últimos dias foi arrasado, e não há vestígios dele, nem do corpo do ditador, nada, só conjeturas. Ele sequer foi julgado como outros, em Nuremberg. Ele “escapou” por um desvão da história. Foi seu último crime.

A exposição “encarna” este vazio.

Nela há de tudo, menos Hitler. Quer dizer: dele, ou próximo dele, só há, que me conste, uma mesa de trabalho. O resto são imagens, imagens e mais imagens, que o povo alemão deglutia naquela época a mancheias. E hoje, mesmo que criticamente, como nessa mostra, continua deglutindo, porque não há o corpo presente. A seu modo, Hitler também é um “desaparecido”. (Por favor, nem por sombra estou comparando esse ditador a qualquer dos prisioneiros políticos do mundo inteiro que “desapareceram”). Mas estou chamando a atenção para o fato de que “ele”, o ditador assassino, deixou no seu lugar um “vazio”, um “não ser”, um “não lugar”, que pode ser preenchido a qualquer momento ou de tempos em tempos, como se fosse um daqueles vampiros do cinema, que a gente viu morrer num filme, mas sabe que ele pode ou certamente vai renascer no outro. É o sentimento da ameaça ao mesmo tempo distante e iminente.

A exposição desperta isso. Nesse sentido, ela é um sucesso pleno.

O que vemos nela são objetos de época. Desde bustos de Hitler, até baralhos com sua efígie no verso das cartas, brinquedos de criança tematizando Hitler, soldadinhos de chumbo do exército nazista com Hitler fazendo a saudação típica num palanque, jornais, filmes, fotos, e isso multiplicado aos milhares, mais ou menos como era naquela época. Chega a dar uma saturação próxima da náusea, ainda mais quando vemos aquelas crianças, mulheres, homens jovens e adultos, velhos, etc., com o olhar sorridente e fascinado perante aquela figura – me desculpem – “lavada e besta” que Hitler tinha. Mas que talvez por isso mesmo, pelo olhar de “esperto idiota”, fascinava.

Vale a pena visita-la, quem puder. Dá para entrar no site do museu e ver algumas poucas das milhares de imagens que nela constam. Assim mesmo não deixe de visitá-la.

Não se assuste, se perceber em si mesmo essa sensação de desconforto nauseante que eu descobri em mim. É o confronto com esse “vazio existencial” que Hitler, de corpo ausente, deixou em todos nós. É o primeiro passo para esconjurá-lo, e dele nos libertarmos.