Crise diplomática na Europa. A mão de Thierry Henry

Thierry: herói ou vilão? Herói e vilão? É isso aí e muito mais (Foto: Reprodução) Volto a Berlim depois de uma rápida excursão a São Paulo*.  Encontro a Europa em […]

Thierry: herói ou vilão? Herói e vilão? É isso aí e muito mais (Foto: Reprodução)

Volto a Berlim depois de uma rápida excursão a São Paulo*.  Encontro a Europa em pé de guerra.

As ameaças vão desde mensagens e farpas diplomáticas à ameaça de boicote internacional ao vinho francês. Motivo: a “mãozinha” que a mão do atacante Thierry Henry deu para classificar a França, contra a Irlanda, para o mundial de 2010 na África do Sul.

O jogo foi em Paris, no dia 18 de novembro pp. Na ida, em Dublin, a França ganhara por 1 a 0. No finzinho do jogo do dia 18 a Irlanda ganhava de 1 a 0. O resultado levava a decisão para os pênaltis. E para os dois times era o fim do fim ou o recomeço do recomeço: já corria a fase da repescagem.

Falta contra a Irlanda. Cobrada pelo alto, fica claro na hora mesmo que há dois jogadores franceses em impedimento, e um deles era Thierry Henry. O árbitro não apita. Thierry se adianta e junto à linha de fundo, ajeita claramente a bola com o braço (1a. vez) e com a mão (2a. vez), e dá um tapa (desta vez com o pé) na bola para o centro da pequena área. William Gallas cabeceia e empata para a França. Reclamações, gritos, dedos em riste dos jogadores irlandeses. O juiz sueco Martin Hansson nem se abala e valida o gol. A França está classificada.

Thierry: herói ou vilão? Herói e vilão? É isso aí e muito mais. O jogador, cuja equipe hoje é o Barcelona, reconhece a falta. Há reportagens que lhe atribuem até o dito de que a partida deveria ser jogada de novo. Ao mesmo tempo, ele diz que se sente “só” e que, não fosse o apoio da família e de amigos, entraria em depressão, desistiria da seleção francesa.

O primeiro ministro irlandês Brian Cowen também acha que a partida deveria ser anulada. Exorta o presidente francês Nicolas Sarkozy a pedir o mesmo. Sarkozy reconhece o erro do árbitro, mas diz que não se mete nessa cumbuca. Já o presidente da FIFA, Sepp Blatter diz que nem que o rebanho de gado Hereford da Irlanda morra de gripe suína (ou algo assim) a partida será anulada. Mais ministros, dessa vez da área esportiva, entram na discussão. O ministro de esportes da Irlanda, Martin Cullen, se dirige diretamente ao presidente da FIFA, sem resultado. 

Fora das quatro linhas especula-se sobre se haveria uma espécie de “inclinação informal” para que grandes equipes, ou melhor, equipes de grandes países não fiquem fora das copas.

Por outro lado, o jornal francês Le Monde promove uma consulta informal sobre se a França mereceu a classificação: 80% dos que respondem (até hoje, 23/11) dizem que não. Na França predomina um sentimento de perplexidade; na Irlanda, de ódio e frustração; no resto da Europa, de estupor.

Na França, a extrema direita se agita: ela já reclamava do “escurecimento” do time francês; agora há quem se regozije pelo fato de que o pivô do “crime” não seja um “francês da gema”. Afinal, se Thierry Henry nasceu nos subúrbios de Paris, é filho de pai de Guadelupe e de mãe da Martinica (aquela da banana nanica), ambas nas Antilhas. Se o leitor ou a leitora estão escandalizados com o racismo, acalmem-se: certamente outras sandices piores virão à tona.

A Irlanda passa por um mau momento de baixa auto-estima. Era uma das meninas dos olhos do neo-liberalismo europeu e mundial, junto com a Islândia. Ambas as ilhas naufragaram fragorosamente com a crise dramática de setembro de 2008. A copa seria uma oportunidade para reerguer o moral, unificar o sentimento nacional. Tudo isso lhes foi roubado pela mão de Thierry, pela cegueira do juiz e pela injustiça da mão divina, quem sabe.

Mas ainda há quem preserve a lucidez e o bom humor. O comediante irlandês Ardal O’Hanlon lascou: “800 anos de opressão britânica? Deixa pra lá. Agora sim temos algo para reclamar”.

Em outros quadrantes a situação também não está fácil. Na semana passada a Argélia desclassificou o Egito também na disputa por uma vaga no próximo mundial. Resultado: ataques contra residências, escritórios e lojas de egípcios em Argel; ameaça de invasão da embaixada da Argélia no Cairo. Na Alemanha há investigação sobre suspeita de manipulação de até 32 jogos do campeonato nacional.

Caramba, que saudade da lisura dos jogos do futebol das várzeas de antanho. Por vezes o clima de confraternização era tal que os capitães dos times, além de apertarem as mãos, tiravam ostensivamente as respectivas navalhas de dentro das meias e, num gesto mais que simbólico, as entregavam ao juiz. Que as devolvia depois do jogo, é claro. Isso é que era espírito esportivo. O resto é canapé.

Agora, se a França ganhar a copa, quem deve por a mão no caneco e levantá-lo, no gesto inventado e consagrado pelo capitão Bellini em 58, é o Thierry.

 

*Para uma jornada de estudos literários sobre as obras de Antonio Candido e do crítico uruguaio Ángel Rama no Memorial da América Latina.