A violência no Quirguistão e o fim da União Soviética

Veículos blindados militares em Osh, no sul do Quirguistão. Atos mais violentos desde a destituição do presidente em abril (Foto: Reuters) Assunto não falta: é só ouvir a gravação de […]

Veículos blindados militares em Osh, no sul do Quirguistão. Atos mais violentos desde a destituição do presidente em abril (Foto: Reuters)

Assunto não falta: é só ouvir a gravação de minha entrevista na Rádio Jornal Brasil Atual para ter uma idéia da pauta do dia e da semana.

Aqui no blog decidi registrar uma questão complexa, e ainda não visitada: a da violência, aparentemente “étnica”, no Quirguistão.

O Quirguistão é uma das ex-repúblicas soviéticas, encravada no meio de outras de nome não menos estranhos para nós. Ao norte, faz fronteira com o Cazaquistão, a leste com a China (relativamente perto da cidade chinesa de Urumqi, onde também houve distúrbios graves em julho de 2009, na região de Xinjiang, opondo os uigures muçulmanos e os han, majoritários em todo o país). Ao sul, está o Tadjiquistão  e a oeste, o Uzbequistão.

Na Rádio Brasil Atual, Flavio Aguiar fala sobre novos desdobramentos da crise econômica na Europa

Para situar melhor geograficamente esse conjunto deve-se observar ainda que ao norte, depois do Cazaquistão, está a Rússia; a oeste, também o Turcomenistão e depois o mar Cáspio; logo ao sul do grupo estão, de leste para oeste, o Paquistão, o Afeganistão e o Irã, que faz fronteira com o Iraque, no limiar do Oriente Médio. Uma região, portanto, propensa a agitados conflitos guerreiros e de confronto no cenário mundial.


Exibir mapa ampliado

O Quirguistão tem uma população de 5,5 milhões de habitantes, 15% (725 mil) dos quais são emigrados do vizinho Uzbequistão. Tem a peculiaridade de ter, em seu território, uma base militar russa, herança da finada União Soviética, e outra norte-americana, cuja principal função é a de servir de apoio aéreo para ações no Afeganistão, além de, é claro, ser uma espécie de “muro” diante de qualquer intenção da Rússia na região.

A crescente violência concentrou-se na cidade de Osh, onde há uma grande colônia do Uzbequistão. Casas e estabelecimentos comerciais de uzbeques foram saqueados e muitos deles (fala-se em de 120 a 140 mortos) assassinados, inclusive velhos, mulheres e crianças. Um número estimado entre 45 e 85 mil uzbeques fugiu para o país vizinho, que fechou a fronteira alegando não ter mais espaço onde acolhe-los, e pediu uma intervenção militar russa na região para ajudar a manter a ordem, que até a redação deste post não tinha vindo.

No pano de fundo imediato desse conflito e dessa tragédia está um cenário social de pobreza, exclusão, carestia e disputas políticas pelo governo do país. No pano de fundo histórico, está um contínuo de corrupção, violência, desmandos que se sucederam ao fim da União Soviética e o processo de “democratização” do país.

 Quando a União Soviética se desfez, em 1991, assumiu o poder no Quirguistão o governo liderado por Askar Akayev, composto por “recém conversos” ao modelo ocidental de democracia e também remanescentes dos antigos comunistas de plantão. Esse governo foi substituído pelo de Kurmanbeck Bakiyev, em meio a acusações de corrupção e fraudes eleitorais, em 2005, num episódio que ficou registrado sob o poético nome de “Revolução das Tulipas”, ou “Revolução Rosa”.

Em matéria de acusações, o governo de Bakiyev não só não ficou atrás do antecessor, como passou à frente: nepotismo, com familiares seus e amigos desfrutando de postos oficiais e de generosos contratos, saque da infraestrutura do país, perseguições com desaparecimento de oposicionistas, censura à imprensa foram alguns dos “tags”, “links” ou “palavras-chave” logo associadas ao seu mandato.

Isso levou a violentos protestos, reprimidos à bala, na capital, Bishkek, em abril deste ano, quando Bakyiev teve de fugir, acabando por se refugiar na Bielo-Rússia ou Rússia Branca, ao norte da Ucrânia, entre a Rússia e a Polônia. Assumiu uma junta provisória liderada por Roza Otunbayeva, uma ex-militante do Partido Comunista Soviético e Ministra de Relações Exteriores no governo de Akayev, além de embaixadora em Washington e Londres.

No sul e sudoeste do país, nas cidades de Jalalabad (ou Jalal-Abad) e Osh, concentram-se partidários de Bakiyev; e os uzbeques da região são vistos como partidários do novo governo, de Otunbayeva, um componente político que se somou às rivalidades étnicas e às disputas por espaço vital num país empobrecido.

Ao final do governo de Bakiyev, por exemplo, em fevereiro deste ano, o custo da eletricidade subiu em 170%, enquanto o do aquecimento (a óleo ou gás) subiu 400%.

Um caso exemplar da situação é a complexa “negociação” em torno da base norte-americana de Mana, junto ao aeroporto do mesmo nome. Em fevereiro de 2009, em visita à Moscou, Bakiyev prometeu fechar a base, em troca de uma promessa de investimentos russos de 2 bilhões de dólares no país. Entretanto a medida jamais for sequer aventada de fato, porque… os norte-americanos ofereceram mais dinheiro em troca da manutenção da base. Em conseqüência, os investimentos russos jamais vieram, enquanto os norte-americanos (cuja quantia permanece nebulosa) foram parar não se sabe bem onde.

Por essa razão – a famigerada base – o governo norte-americano é acusado de, no mínimo, ter feito vista grossa diante dos desmandos notórios de Bakiyev e seus apoiadores.

A situação decorrente daquela “Revolução das Tulipas” nada tem de extravagante. Outras “revoluções”, batizadas ou não com nomes “poéticos”, ocorreram em países que pertenciam à extinta URSS ou eram dela satélites. A “Revolução Laranja” ocorreu na Ucrânia, em 2004/2005; a “das Rosas”, na Geórgia, em 2003. Sem falar nas que levaram ao fim da Iugoslávia, da Tchecoslováquia, à sangrenta derrubada do regime comunista na Romênia. Entretanto, quase 20 anos depois do fim da União Soviética, o que se ouve falar a respeito de tais países envolve desemprego, pobreza, carestia, quando não inclui corrupção e ascensão de políticas de extrema-direita e/ou xenófobas, e uma ortodoxia religiosa carola e conservadora ao extremo, em todas as religiões, além de, em alguns casos, guerras intermináveis e genocidas. Sem falar na própria Rússia, onde o autoritarismo do regime comunista foi substituído pela privataria de Boris Yeltsin, a autocracia corrupta dos novos oligarcas russos e depois pelo neoczarismo de Vladimir Putin.

É claro quem nem tudo pode ser atribuído às mazelas do capitalismo vitorioso. O fim da União Soviétiva revelou que o projetado “homo sovieticus” do futuro era uma ficção nada científica. E que acabou sendo substituído por um “exército de reserva” de novos ricos e incensadores da idolatria dos mercados de fazer inveja aos líderes do Consenso de Washington.

Também deve-se assinalar que diversas investigações na mídia e por organismos independentes trouxeram à baila que as tais de “revoluções”, coloridas por belos nomes ou não, tiveram substancial apoio – inclusive financeiro e de treinamento em articulação civil e/ou militar – de órgãos oficiais, oficiosos, ONGs e instituições financeiras com sede nos Estados Unidos. Ou seja, nada tiveram de “espontâneas”, como se quis fazer acreditar nas suas respectivas épocas. Fizeram parte dessa estranha continuidade da Guerra Fria, agora sem nome próprio.

 

Leia também

Últimas notícias