A guerra mais que suja no Iraque

(Foto: Bob Strong) Meu primeiro emprego como jornalista foi no escritório da United Press International, em S. Paulo, como tradutor e eventualmente redator e repórter, em 1969. Tornei-me um “especialista” […]

(Foto: Bob Strong)

Meu primeiro emprego como jornalista foi no escritório da United Press International, em S. Paulo, como tradutor e eventualmente redator e repórter, em 1969. Tornei-me um “especialista” em Guerra do Vietnã. Muita coisa do que saiu na mídia brasileira sobre esse tema, naquela época, fui eu que traduzi.

Entrei nos meandros da guerra, até naqueles de como, por exemplo, as notícias eram redigidas de modo a favorecer a visão do Exército norte-americano no terreno das operações. Aprendi a ver como se criava a distância entre o que a gente lia, nos relatos, e o que devia estar acontecendo “lá”, no teatro da guerra.

A mesma impressão me retorna, agora multiplicada por dez, ao enfrentar a leitura (que fiz apenas em parte, e uma pequena parte) dos “War logs” secretos revelados pelo site Wikileaks, dirigido pelo australiano Julian Assange.

Os “logs” são relatórios prévios, não consolidados, que as patrulhas e comandos devem fazer quando retornam. São lacônicos, telegráficos, frios, sem estilo nem alma. Parece que a gente está lendo uma receita de bolo, uma bula de remédio mal escrita, coisas assim. Mas à medida que a leitura prossegue, começa a subir uma sensação de terror misturada com horror, porque a gente vai se dando conta (também através da análise do pessoal do The Guardian, New York Times e Der Spiegel) do real que aquilo tudo ao mesmo tempo esconde e revela.

O caso mais eloqüente pode agora ser acompanhado no site do The Guardian, e é o dos helicópteros “Crazy Horse 18 e 19” que atiram sucessivamente num grupo de civis e depois numa van que pára a fim de socorrer os feridos, que se arrastam pelo chão.

No primeiro caso, aparentemente houve um equívoco, porque dois dos civis (que, aliás, morreram) eram jornalistas da Reuters e o pessoal dos helicópteros confundiu suas câmeras com armas. No segundo não houve equívoco nenhum: a van para e começa a recolher os feridos e eles atiram nela porque seus ocupantes estão exatamente fazendo isso. A van estava cheia de crianças e adultos, e alguns destes morreram na hora.

O mais chocante ainda é ouvir a trilha sonora, os comentários dos soldados que estão atirando sobre os civis lá embaixo. Chega a ser obsceno.

Outra coisa obscena que transparece nesses relatos agora vindos a público, é o comportamento dos grupos privados que ganham contratos para trabalhar na guerra, ao lado das forças regulares. Há muitos desses grupos, norte-americanos, ingleses e de outros países, e eles usam também pessoal contratado no Iraque. Parece que no afã de engordar suas estatísticas, eles atiram em qualquer coisa que se mova, até uns nos outros e inclusive nas tropas regulares. São os óbices de uma guerra densamente “terceirizada”, ou “privatizada”.

Os 391.832 documentos revelados dão conta, entre 1o. de janeiro de 2004 e 31 de dezembro de  2009, de 109 mil óbitos na guerra. Pouco mais de 66 mil são de civis, quase invariavelmente mortos pelas tropas invasoras e seus aliados – ou contratados. Cerca de 15 mil são de militares iraquianos, 24 mil são de pessoas descritas como “insurgentes” e 3,8 mil de tropas da coalizão que derrubou Saddam Hussein e ocupou o país. E ainda há um pequeno número de mortes não esclarecidas ou “por acidentes”.

Outra revelação dos documentos é a de que houve uma política deliberada de conivência com seqüestros, tortura e assassinatos praticados por forças do Iraque, por parte das “tropas aliadas”. Não raro lê-se que prisioneiros foram entregues àquelas forças para “interrogatório suplementar”, ou algo assim. Leia-se: tortura, seguida talvez de assassinato. Destaca-se a “Brigada Lobo” iraquiana, formada – pasme-se quem quiser se pasmar – por remanescentes da “Guarda Republicana” de Saddam  Hussein, recrutados para esse novo “serviço”.

Julian Assange vive numa semi-clandestinidade, por ora na Inglaterra. Solicitou permanência na Suécia, que lhe foi negada. Seu suposto informante, Bradley Manning, de 23 anos, ex-analista de inteligência do Exército norte-americano, está preso, e arrisca uma condenação a 52 anos de prisão. Entretanto, é humanamente impossível que Manning seja o único “whistleblower”, como se diz em inglês, a revelar documentos e filmes secretos para a Wikileaks.

O caso lembra o dos “Pentagon Papers”, sobre a Guerra do Vietnã, revelados por Daniel Ellsberg ao New York Times, e que foram publicados em 1971, mostrando como sucessivas administrações norte-americanas – sobretudo a de Lyndon Johnson – tinham mentido ao Congresso dos EUA e ao público sobre aquela guerra.

De qualquer modo, as revelações de agora, arrasadoras para a administração de Bush Filho, mas também comprometedoras para a de Barack Obama, fazem a já horrível Guerra do Vietnã parecerem uma “guerra limpa” perto da atual, que virou, na verdade, além de um genocídio, uma formidável negociata.

 

 

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