Boaventura parte 2 – ‘Foi errado colocar no lixo da história a palavra revolução’

Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos fez uma poderosa síntese dos processos pelos quais passa o mundo, durante o Fórum Social Mundial. Confira nesta segunda parte

Direto de Porto Alegre – Devemos ver que a democracia nesta década, sobretudo neste continente, mostrou uma extraordinária virtuosidade para ser apropriada pelas classes populares e ser usada de maneira contra-hegemônica, contra aqueles que sempre pensaram que a democracia é para eles, sobretudo para eles. Ainda hoje, na América Latina, as classes proprietárias e a direita pensam fundamentalmente por uma opção inadmissível de que a democracia ou é irrelevante a ponto de não afetar seus interesses, ou é ingovernável.

A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo. Isso significa que também a transformação do mundo pode ter lugar a partir de mecanismos, ideias e princípios que não foram pensados pelo mundo ocidental. Ideias novas de pensamento não ocidental que podem se misturar numa perspectiva de interculturalidade para um novo modelo. Os povos indígenas não falam em “socialismo do século 21”, falam em dignidade e respeito.

Obviamente, podemos pensar que dignidade e respeito é socialismo. O bem viver não pode ser traduzido em socialismo de século 21? Claro que pode! Temos muitas linguagens para pensar o futuro e a hegemonia é que a gente comece a transitar entre elas.

É prematuro lançar no lixo da história ideias e conceitos enquanto uma situação social não ocorrer efetivamente. Lançou-se no lixo da história a ideia do socialismo. E aí está ela na agenda de vários países, a palavra voltou. Foi errado colocar no lixo da história a palavra revolução. Não são as revoluções do século 20, que foram criadas “contra a democracia”.

Todas essas revoluções de agora chegaram ao poder com a democracia. Obviamente que aprenderam muito com Salvador Allende, que muitas vezes não lembramos como deveríamos lembrar, como a grande referência que tem na fundação deste continente ao lado de Fidel Castro.

Quais são nossas dificuldades para criar esse conjunto? É tão difícil imaginar o fim do capitalismo quanto imaginar que não tenha fim. Por mais que a gente fale rapidamente da transição para o socialismo, a verdade é que muitos de nós aqui achamos muito difícil imaginar que o capitalismo tenha fim.

Mas por outro lado acreditamos que é  inimaginável que não tenha fim. Portanto, estamos, numa conjuntura de Fórum Social Mundial, na necessidade de dizer que é muito importante que estejamos juntos no ponto de partida. Não é necessário, desde já, que estejamos todos no ponto de chegada. Não vamos nos angustiar com isso, mas vamos caminhar juntos enquanto ficar claro que as diferenças entre nós são menores que as diferenças entre nós e eles.

Há uma diferença no Fórum dos que pensam que a solução é o capitalismo benévolo, outros que pensam que a solução é ambiental, outros que pensam que deve ser num contexto pós-capitalista. O que é certo é que todos estão hoje convencidos no Fórum de que não podemos perder oportunidades de melhorar a vida das pessoas agora. Não temos de esperar uma aurora brilhante adiante porque, se não atuarmos já, provavelmente o “lá adiante” não existirá. Esse sentimento de urgência é fundamental e primaz, ao contrário do que aconteceu no século 20.

No mesmo continente e no mundo, temos que atuar em lutas mais avançadas, como aquelas que têm o socialismo na agenda, e lutas menos avançadas, defensivas, como aquelas que referi sobre a criminalização do protesto social. Uma das coisas que me preocupam neste continente é a emergência de paramilitarismo.

Estamos vendo o paramilitarismo na Venezuela, não é apenas na Colômbia. Está na Bolívia, no Equador, no Chile, no Brasil. Há uma extrema direita neste continente e no mundo que não aceita perder democraticamente e que está a aterrorizar as lideranças, sobretudo indígenas e afro, jovens. Portanto, nada de triunfalismo. Temos de avançar, mas temos de defender aquilo que temos.

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