Atriz foi última pessoa a ver Heleny viva

Da janela de um ônibus, Heleny dá adeus. Para sempre. O emocionante relato de Dulce Muniz, última pessoa a ver Lenita viva em São Paulo

“Dulce, avise que volto”, disse Lenita à atriz (Foto: Leonardo Brito)

Bebedouro – A atriz Dulce Muniz, 64 anos, foi a última pessoa em São Paulo a ver Heleny viva – ela acompanhou a amiga até o ônibus para o Rio de Janeiro, em julho de 1971, mês em que Lenita desapareceria para sempre, aos 30 anos de idade. “Lembro-me dela na janela gritando para mim: ‘Dulce, por favor, avise à tia Irma que volto para levar o Chico e o João (seus filhos) para a praia’ É a imagem que guardo – ela preocupada com a tia que a criou junto com a mãe, dona Tita, e com os filhos pequenos, que ela adorava”– diz.

Dulce ainda mantém vivos os princípios que aprendeu com a professora e amiga Heleny Guariba: viver do seu trabalho, sem se corromper, acreditando até o fim da vida na possibilidade de transformar o mundo. “Eu não mudei, escolhi esse caminho, que aprendi com Rosa de Luxemburgo, Iara Iavelberg e Heleny Guariba, mulheres a quem dediquei peças e que me influenciaram demais” – conta.

Ao abraçar a militância, em 1969, Heleny se distanciou dos amigos, com medo de comprometê-los. Mas continuava a ver Dulce no apartamentinho em que morava na rua do Teatro Arena, Teodoro Baima. “A gente jantava, conversava, falava também de amores, ela dos filhos, embora a luta política fosse o seu foco” – diz Dulce. “Ela pretendia voltar” – acrescenta, rebatendo a versão de que ela viajara para participar de um assalto.

Mesma cela

Dilma e Heleny viveram na mesma cela no presídio. Na cadeia, Heleny recebia a visita dos filhos e do namorado Zé Olavo, que conhecera na militância. Zé Olavo fora preso em fevereiro de 1970 e Heleny, que estava escondida em um sítio da família dele, foi agarrada pela Operação Bandeirante em Poços de Caldas (MG), em março de 1970.

Frei Betto, que esteve preso com ela, a descreve assim em uma carta transcrita no livro Batismo de Sangue: “Pequena, arisca, você sempre me pareceu uma pessoa muito bonita, dessa beleza que vem de dentro para fora, enraizada no espírito ágil, que conserva, no corpo, o jeito de menina. Mesmo na prisão, sua alegria contagiava. Guardo de você a última vez que a vi. Era seu aniversário e seus filhos levaram um bolo com velinhas e um presente.

Ao desfazer a fita de cetim rosa e papel colorido, você viu o que era e achou muita graça, começou a mostrar a todo mundo, a beijar as crianças que, como você, riam das calcinhas em suas mãos. Logo você foi solta, pois apesar das torturas que sofreu nada conseguiram provar contra você. Em julho de 1971, correu a notícia de seu desaparecimento. Sabe-se que foi pelos órgãos de segurança e consta que morreu sob tortura. Disseram que jogaram o seu corpo no mar. Não sei, não posso admitir. Só sei que agora Iemanjá tem um rosto conhecido e um jeito alegre de menina prestativa”.

Cabeleireiro burguês

“Vale contar uma história para as pessoas entenderem que a vida continua, mesmo na luta brava” – diz Dulce. “Dilma – nossa presidenta, da qual  me orgulho – sempre teve problemas com o cabelo, que não assentava. Um dia, a Iara Iavelberg (ex-mulher de Lamarca) resolveu levá-la ao Jambert, cabeleireiro mais famoso da época. E lá fomos nós, bem discretinhas, em pleno território burguês. Mulher é sempre mulher”– conclui rindo.