Cordobazo: o dia mais importante da história argentina

O historiador Osvaldo Coggiola conta como foi o Cordobazo, movimento que iniciou a derrubada de uma ditadura e que completa 40 anos

Os sobreviventes do Cordobazo formariam uma geração que mudaria os parâmetros culturais e sociais da Argentina, mas acabaria vítima da ditadura

“Eu era estudante secundarista, então fui quase sozinho porque não tínhamos nenhuma organização. Eu sabia mais ou menos por onde as pessoas iriam passar. Eu morava num bairro mais periférico, fui andando e comecei a me integrar às manifestações e tudo o mais. Foi duro porque estávamos nos manifestando e de repente aparecia a polícia e atirava, mas atirava para valer, era para matar”

O testemunho acima foi dado por Osvaldo Coggiola à Rede Brasil Atual. Hoje Professor Titular do Departamento de História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, era um jovem de 17 anos na época do Cordobazo, o evento que, segundo ele, foi o “dia mais importante da história da Argentina”.

Em 1969, o país vivia sob o governo ditatorial de Juan Carlos Onganía. Poderia ter sido apenas mais um dos ditadores saudados pelo diário Clarín nos sucessivos golpes de Estado que insistira em frequentar a Casa Rosada, mas não foi dessa maneira. Onganía realizou uma política de congelamentos salariais, proibição de greves e perseguição de dirigentes sindicais.

Para o dia 29 de maio, os três maiores sindicatos acertaram uma paralisação de 36 horas. Agustín Tosco, um dos protagonistas, deu na ocasião uma definição feliz sobre o episódio: “O Cordobazo é a expressão militante, do mais alto nível quantitativo e qualitativo, da tomada de consciência de um povo que se encontra oprimido e que quer liberar-se para construir uma vida melhor porque sabe que pode vivê-la e que quem impede são os que especulam e beneficiam-se com o adiamento e a frustração de todos os dias”.

Saídos às ruas para protestar, os trabalhadores foram reprimidos a bala pela polícia. O movimento estava longe do fim. A morte de um manifestante fez com que uma cidade inteira fosse à busca de justiça. Operários da periferia logo encontraram no centro os universitários e os secundaristas. “Tudo ficou na mão dos manifestantes. A polícia fugiu, nas 24 horas seguintes praticamente não sobraram autoridades em Córdoba”, lembra Coggiola.

A polícia, despreparada para enfrentar manifestação tamanha, cedeu lugar ao Exército que, já avisado das dificuldades, organizou uma repressão que deixou dezenas de mortos. Parte da população, que ainda guardava as armas usadas para derrubar Juan Domingo Perón em 1955, atirava agora contra os militares.

“Eu me lembro que se faziam barricadas para que o Exército não entrasse nas principais vias e, desde as sacadas, jogavam coisas para que fizessem as barricadas. Sofás, cadeiras, pneus. A solidariedade popular foi simplesmente enorme. Ninguém agüentava mais um governo autoritário, cretino, obscurantista, era tudo o que podia haver de insuportável”, aponta o professor.

Apesar de terem armas nas mãos e de uma população carente em termos econômicos, saques não eram permitidos durante o Cordobazo: “Não se entrou nas lojas, nas mercearias. Poderiam ter quebrado vidraças e roubado. Lembro de uma pessoa que tentou entrar em uma loja de máquina de escrever. Imediatamente, outras pessoas que estavam perto impediram que roubasse. A única coisa que houve foi roubo de registro de crédito imobiliário. As pessoas que tinham tomado crédito e que não conseguiam pagar. O restante foi tudo uma manifestação política que não teve nada a ver com vandalismo. Estavam para manifestar-se contra o governo, para defender sua posição”.

A greve nacional iniciada em Córdoba espalhou-se por todo o país. Vieram o Rosariazo e o Tucumanazo – atente-se que em Buenos Aires, onde estavam os sindicatos mais antigos e ligados ao peronismo, os líderes não permitiram que o movimento tomasse grandes proporções. Começava a cair o regime de Onganía, que teria que abrir mão do poder no ano seguinte. Lamentavelmente, foi um golpe militar organizado por Alejandro Lanusse que depôs o presidente. Com a pressão popular, eleições foram convocadas.

A década seguinte veria Juan Domingo Perón voltar ao poder. Mas já não era o mesmo. Tratava-se de um presidente debilitado pelo câncer, que pouco governava. Depois da morte dele, assumiu a esposa, Isabelita Perón, que nem de longe tinha o mesmo carisma e habilidades de Evita, e acabou sendo um fantoche nas mãos dos generais. Em 1976, decidiram que Isabelita já poderia retirar-se e a ditadura mais sangrenta da América Latina era oficialmente instalada – e, novamente, saudada pelo diário Clarín. O Cordobazo, nas palavras de Coggiola, abortou.

Mas seria incorreto dizer que o movimento de 69 não teve consequências: “houve nas universidades um questionamento geral a absolutamente tudo, não só às autoridades, mas aos métodos de ensino, aos professores reacionários, ou seja, foi um movimento que teve consequências muito além das reivindicações imediatas. No plano político, reivindicando o fim da ditadura. No plano ideológico, reivindicando o fim das relações autoritárias. Houve um processo de organização muito rápido. Surgiram comitês de bairro, além dos sindicatos de esquerda, que começaram a ganhar eleições uma atrás da outra”, lembra o então manifestante. Os estudantes secundaristas de Córdoba, que até 1969 não estavam organizados, dias depois se reuniram em uma federação para a qual Osvaldo Coggiola foi eleito presidente.

A Argentina transformou-se no centro de mobilização da esquerda na América Latina, ainda que a situação do Chile chamasse mais atenção por conta da atuação de Salvador Allende. A geração setentista, como ficaram conhecidos os jovens que participaram do Cordobazo, seria dizimada pelo governo ditatorial iniciado em 1976. “Foi uma geração que teve uma posição política e cultural audaciosa, mas que sofreu muito. Quase todos meus colegas de adolescência estão mortos”, lamenta o professor. Dos 23 estudantes expulsos da Universidade de Córdoba no início do regime militar, apenas cinco sobreviveram às semanas seguintes. Coggiola é um deles. Depois de alguns anos estudando na França, acabou desembarcando no Brasil, onde está até hoje.

A comunhão entre operários, estudantes e classe média jamais voltaria a ocorrer desta forma, ainda que se pensar em uma relação parecida durante o “Que se vayan todos” do fim de 2001 e início de 2002.

Ouça, em espanhol, o documentário produzido pela Agência Radiofônica de Comunicação Argentina.

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