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No pico da pandemia, futebol brasileiro vira as costas aos mortos da covid-19

Em todo o Brasil, federações e clubes pressionam pela continuidade dos torneios, mesmo em um momento crítico da crise sanitária

Rodrigo Coca / Agência Corinthians
Rodrigo Coca / Agência Corinthians
Com futebol proibido em São Paulo, clubes como Palmeiras, Mirassol, São Bento e Corinthians foram a Volta Redonda-RJ e deram sequência ao Campeonato Paulista

São Paulo – As partidas do futebol brasileiro seguem disputadas diante do pior momento da pandemia no Brasil, com recordes diários de casos e mortes de covid-19 e o colapso do sistema de saúde no país. Apenas o estado de São Paulo paralisou o campeonato estadual, mas enfrenta pressão da federação local e dos clubes para retomar os jogos.

Nesta terça-feira (6), 4.195 novas vítimas foram registradas oficialmente, dia com mais mortos pela covid-19 desde o início da pandemia, em março de 2020. Apesar do caos sanitário, a orientação da Confederação Brasileira de Futebol e de seu presidente, Rogério Caboclo, é pela continuidade do calendário de todos os torneios.

Médicos sanitaristas, jornalistas esportivos e treinadores já defenderam a paralisação dos torneios. O neurocientista Miguel Nicolelis disse, ao canal SporTV, que não há razões para continuidade do futebol durante o pico da pandemia. “O futebol precisa parar porque o Brasil precisa parar. A Fiocruz divulgou relatório mostrando que estamos vivendo o maior colapso de saúde, sanitário e hospitalar da história do Brasil”, afirmou o médico, em entrevista concedida em 17 de março.

O governador paulista João Doria decretou, no dia 11 de março, a suspensão do futebol no estado. A medida pouco adiantou de imediato já que, nos dias seguintes, clubes como Palmeiras, Mirassol, São Bento e Corinthians foram a Volta Redonda, no Rio de Janeiro, onde os decretos paulistas não têm efeito, e deram sequência ao torneio.

A insistência em entrar em campo durante o caos da pandemia por parte dos clubes e federações é uma ação negacionista do futebol, de acordo com o jornalista Juca Kfouri. Segundo ele, os times tentam se colocar acima de outras atividades profissionais do país. “O futebol passa a mensagem de que está tudo bem à população. Falam sobre o futebol ser o entretenimento para deixar a população em casa, o que é um absurdo. Querem passar uma situação de normalidade que não existe, são cúmplices dessa escalada de covid-19”, criticou à RBA.

O futebol não é seguro

Em março 2020, com a pandemia decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), todos os campeonatos paralisaram. Quatro meses depois, em agosto, o futebol retornou com um protocolo sanitário, elaborado pela CBF, que exige o aumento de testes antes das partidas. A medida não deu certo. Vários atletas testaram positivo para a covid-19, clubes enfrentaram surtos do vírus e poucas partidas do Brasileirão foram adiadas.

Treinadores como Marcelo Veiga, Ruy Scarpino, Radson Júnior, Samuel Bezerra e Renê Weber morreram por complicações decorrentes da covid-19. Jorge Luiz Domingos, massagista do Flamengo por 40 anos, também foi vítima do vírus.

Estudo recente conduzido pela Universidade de São Paulo (USP) aponta que a incidência de infecção pelo novo coronavírus entre os atletas da Federação Paulista, durante a temporada de 2020, foi de 11,7%. O índice equivalente ao de profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia.

O médico fisiologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Gualano, que liderou a pesquisa, afirma que o futebol não é seguro para continuar as atividades no pico da pandemia. “O protocolo de segurança da Federação Paulista de Futebol é tecnicamente adequado. Implementado na (ligã alemã) Bundesliga, seria útil. Contudo, num país que se permitiu atingir um estágio de descontrole epidêmico, não parece haver protocolo que dê conta de garantir o funcionamento do esporte em condições mínimas de segurança. A única alternativa segura seria isolar o futebol da comunidade”, explicou em artigo publicado na Folha de S.Paulo.

Um dos exemplos de imprecisão do protocolo é a partida entre Independiente Del Valle e Grêmio, inicialmente marcada para esta quarta-feira (7), em Quito, válida pela terceira fase da Libertadores, mas remarcada para sexta-feira (9). Dois jogadores testaram positivo para a covid-19 e o time gaúcho não pode sair do hotel, no Equador. O treinador Renato Portaluppi, que também testou positivo no último domingo (4), dirigiu a equipe, no sábado (3), e teve contato muito próximo aos seus jogadores.

Miguel Nicolelis afirma que a testagem não é completamente precisa e jogadores infectados podem entrar em campo. “A CBF usa uma rotina de testagem que ela chama de grande protocolo. Basicamente, ela não informa nos 89 mil testes que fez, com 2,2% de positivo, que usa um teste que pode ter um falso negativo de 30%. O Camacho (jogador do Corinthians) foi retirado da concentração contra o Palmeiras, porque estava com sintomas. O Valdivia (atleta do Avaí) jogou contra o CSA infectado”, exemplificou.

A pressão pela continuidade

Enquanto parte dos governadores e prefeitos enfrentam dificuldades para impor um lockdown pelo Brasil, os clubes de futebol endossam o discurso de Jair Bolsonaro, que coloca a economia como oposição à vida.

Juca Kfouri acredita que a pressão da CBF pela continuidade do futebol na pandemia é uma maneira da entidade atender às vontades do governo federal. Ele também critica o argumento de crise financeira usados pelos clubes de forma geral. “Os clubes, historicamente, são mal administrados. Estão endividados desde antes da pandemia, que se agravou e dificulta que façam a paralisação. Inclusive, essa crise exige da CBF um auxílio emergencial para os jogadores dos times de menor expressão.”

O problema da continuidade do futebol, segundo Nicolelis, é que o esporte está além da partida em si e dos 22 jogadores envolvidos, pois os jogos são responsáveis por criar aglomerações em lares ou estabelecimentos. “É um evento cultural arraigado na nossa cultura. Então, se o futebol continua, passa a imagem de que tudo está normal”, afirmou.

Juca acrescenta que o papel social do futebol é ignorado com a pressão pela volta aos jogos. “Ainda tem o caráter simbólico e pedagógico. Como você convence um jovem de que não pode jogar futebol com os amigos se o time dele está jogando na televisão? Como fecha igreja com o futebol rolando solto? Deveria ser um momento de sacrifício de todo mundo, mas há um total descaso com a vida”, criticou.

A criação da ‘bolha’ do futebol

Em negociação para a retomada do campeonato paulista, o Ministério Público quer que a Federação Paulista de Futebol se responsabilize por testar todas as pessoas envolvidas na partida até uma hora antes de a bola rolar. Já a FPF apresentou um protocolo com a adoção de “bolhas” para jogadores e membros da comissão técnica, que ficariam confinados em hotéis durante a disputa do campeonato.

Bruno Gualano acredita que a solução mais segura para manter a continuidade do futebol é a criação das bolhas, como a NBA (liga de basquete dos Estados Unidos) adotou em 2020, ao confinar os atletas em hotéis nos parques da Disney, a um custo de US$ 170 milhões. “Enquanto a transmissão da covid-19 não for mitigada, a única maneira que você tem para dar segmento a qualquer tipo de setor, não só o esporte, é isolá-lo da comunidade. Ou fecha ou isola”, disse à Agência Fapesp.

Nicolelis endossa a tese e lembra a atual rotina tem um ciclo de contatos que envolve jogadores, funcionários, pessoas envolvidas no futebol e todos seus familiares. “Se não fizer como foi feito na NBA, onde todo mundo ficou no mesmo local, não se consegue fazer esse controle. Precisamos parar o Brasil, precisamos de um lockdown e restringir fluxo de pessoas pela malha rodoviária e aeroviária. Ou então vamos ter uma calamidade épica no Brasil”, defendeu.

Juca Kfouri, que é favorável à ideia de bolha, não acredita que o futebol brasileiro adotaria a medida, já que o calendário não foi prolongado e nenhum torneio reduziu o número de partidas por conta da pandemia. “Não dá para fazer. A NBA fez isso na Disney numa parte final de campeonato, com redução de times. Inclusive, hoje, eles voltaram ao calendário normal e sempre há jogos adiados por causa de testes positivos de covid-19. O futebol não tomou nenhuma providência para encurtar torneios”, lamentou.

Nesta terça-feira, 13 partidas foram disputadas, divididas entre campeonatos estaduais e a Copa do Brasil. Os jogos de futebol estão proibidos em São Paulo pelo menos até 12 de abril, um dia após o término da Fase Emergencial. Enquanto isso, a FPF afirma que a primeira divisão do campeonato paulista será finalizada na data prevista inicialmente: 23 de maio.


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