Cinema

Filme resgata a polêmica e transgressora vida de Tarso de Castro

Documentário de Leo Garcia e Zeca Brito revela várias facetas de um dos idealizadores do 'Pasquim': a paixão pelo jornalismo e pela boemia, a solidariedade com os amigos e os embates com os inimigos

Fotos: divulgação

‘Tarso foi um personagem fascinante, muito complexo. E nunca foi tão urgente falar sobre jornalismo como hoje’

Abusado, despojado, cara-de-pau, curioso, mulherengo, solidário, engraçado, sedutor, ácido, politicamente incorreto, ético, boêmio, comprometido com a luta por um país mais justo, sério, mal-caráter, encantador. Difícil acreditar que esses adjetivos todos tenham sido apontados a uma só pessoa. Mas quando se trata do jornalista Tarso de Castro, as definições extrapolam qualquer limite lógico porque ele era tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Porém, duas caracteríticas sobrepõem essa dualidade toda: intenso e interessante, assim era Tarso de Castro, o criador de jornais como Pasquim, Enfim,Afinal, Caretas e do caderno Folhetim.

Um personagem tão rico na história da imprensa brasileira e do país como um todo não poderia ser retratado de maneira careta e burocrática. O longa-metragem A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro, que estreou esta semana em várias cidades, faz jus ao personagem tanto na forma quanto no conteúdo. Ao contar a história do ícone que morreu de cirrose hepática aos 49 anos de idade, em 1991, o filme dirigido por Leo Garcia e Zeca Brito acaba revelando toda a efervecência do Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Também apresenta ao público uma geração de intelectuais que resistiu à ditadura militar e promoveu uma verdadeira revolução nos costumes e na cultura do país.

Entre os entrevistados estão o cartunista Jaguar, o jornalista Sérgio Cabral, Paulo Caruso, Eric Nepomuceno, Nelson Motta, Roberto D’Ávila, Paulo César Pereio, Caetano Veloso, o ator Antônio Pedro, a ex-mulher de Tarso Bárbara Oppenheimer, o filho João Vicente de Castro, a mãe de João, Gilda Midani, Luiz Carlos Ferreira Maciel e Tom Cardoso, colaborador da Rede Brasil Atual e autor do livro Tarso de Castro – 75 kg de Músculos e Fúria.

As entrevistas foram feitas em bares – ambiente primeiro do personagem central –, em reuniões entre amigos ou então por celular, uma brincadeira dos diretores em referência ao fato de que Tarso vivia ao telefone. Quando não estava em busca de informações para reportagens, o galã usava o aparelho para marcar seus encontros amorosos. Uma das primeiras cenas, inclusive, traz Jarguar na linha tentando convencer o Ziraldo a conceder entrevista para o documentário.

Assim como Millôr e Paulo Francis, o cartunista criador de O Menino Maluquinho acabou se tornando um dos desafetos de Tarso. Sua personalidade difícil e controversa fez com que colecionasse inimizades e que fosse praticamente “apagado” da história do Pasquim. “O Tarso foi um personagem fascinante e muito complexo. E nunca foi tão urgente falar e discutir sobre jornalismo como hoje. Muita gente se esforçou para tentar apagar o Tarso da história (e isso é abordado no nosso filme), então espero que ele seja redescoberto, principalmente por parte das novas gerações. Tentamos fazer jus ao nosso personagem, realizando um documentário que aborda temas sérios, mas de uma maneira bem despojada e engraçada – no melhor estilo Tarso de Castro”, afirma o diretor e roteirista Leo Garcia.

Grande parte da leveza do filme vem de como as entrevistas e imagens de arquivo foram costuradas com cenas de filmes icônicos da época mais produtiva de Tarso. Além de situar o espectador no tempo e apresentar toda a efervescência da época, as cenas garimpadas em filmes como Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira, pontuam características importantes do jornalista. A trilha sonora composta por Detalhes, de Roberto Carlos, Meu Caro Amigo e Cálice, de Chico Buarque, e Proibido Proibir, de Caetano Veloso, dão o tom do longa.

João Vicente e o pai, Tarso de Castro

Dualidade

O Tarso foi demitido do jornal que era dele porque o Brasil não é um hospício qualquer. Eu abracei a tese do Luiz Carlos Maciel de que havia uma coisa meio stalinista no sentido de apagar o Tarso da foto do Pasquim. O que de certa forma vingou. Se você perguntar hoje “E o Pasquim?”, “Ah, o jornal do Millôr, do Jaguar, do Ziraldo, do Francis e tal?”, ninguém cita o Tarso. Isso é uma injustiça histórica porque quem inventou aquilo daquele jeito foi o Tarso”, declara no filme o finado jornalista Celso de Castro Barbosa.

Mas não há apenas desafetos no documentário. “Se tem uma pessoa que a gente conheceu [que era] brilhante, sagaz, atrevida, que conseguiu proezas inacreditáveis na nossa profissão foi o Tarso. Nós temos de tirar o chapéu pra ele. Na hora que ele faz Pasquim, Enfim, Afinal, Folhetim, isso é um currículo invejável que poucos jornalistas podem bater no peito e dizer ‘eu fiz’”, afirma José Trajano em uma mesa de restaurante acompanhado de Pereio e Palmério Dória.

Eric Nepomuceno também resgata o compromisso que o colega de redação tinha com a informação: “O Tarso era um camarada muito antenado com tudo, extremamente informado, mas informado em todos os níveis: no nível do poder e no nível da esquina. Ele se informava de tudo quanto era lado. Aquilo era um mata-borrão que chupava informação de tudo quanto é lado. Era sobretudo muito dinâmico, sem medo, era um jornalista ousado, como deveriam ser todos os jornalistas (…) Ele tinha uma grande visão do ofício porque nós éramos/somos – os que sobrevivemos – de um tempo em que o jornalismo não era profissão, não era burocracia, era ofício. O melhor ofício do mundo”, afirma o autor e tradutor.

O filme tampouco tem a intenção de endeusar o criador do Pasquim. Mesmo os amigos discutem a dualidade ética de Tarso. É o caso de Sérgio Cabral (pai) e a jornalista Lilian Pacce. “Eu acho que o Tarso talvez transcendesse a ética em alguns momentos. Ele era muito ético ao mesmo tempo. Ele tinha uma moral, talvez, dele. Tinha umas coisas com as quais ele era muito rigoroso, ‘isso pode, isso não pode’; em outras, ele era muito louco. Ele podia conviver com um rei e com um mendigo da rua e, nesse sentido, ele era sensacional porque ele tratava todo mundo igual, não tinha nenhum preconceito por nada”, declara Pacce, que foi assistente do jornalista no suplemento Folhetim e hoje é uma referência na área da moda.

Nepomuceno segue a mesma linha: “Todo mundo vai te dizer que ele era um devasso, um pândego, um irresponsável. Ele era tudo isso também, mas ele não era isso. Ele era isso também”. Frente à tanta contradição relatada em um um só personagem, o filme acerta ao abraçar com irreverência e bom humor a complexidade desta que é uma das figuras mais importantes do jornalismo brasileiro.

As mulheres que passaram pela sua vida lembram dele com carinho, apesar de também apontarem as características negativas do amante. Depois de contar sobre a intensa paixão que viveram juntos, Laila Alves de Andrade lembra o quanto também era difícil manter uma relação saudável. “Bom de cama, muito bom de cama. Queria comer todas as minhas amigas. Algumas foram solidárias e não [cederam]… Poucas. Ele era muito persistente. (…) Paixão foi, acho que amor você constrói e ele não permitia construir uma coisa mais [sólida]. Ele se negava justamente por ser um homem do mundo. Ele era um homem do mundo, de todas. Todas as Mulheres do Mundo deve ter sido inspirado nele”, ri Laila, e continua: “O comilão de um modo geral é um machista, né? Eu acho. O homem que não pode passar uma perto tem de se provar o tempo todo, talvez”.

Diante de tanta dualidade, ao final, a esperança acaba se sobrepondo. O encontro entre o jornalista Roberto D’Ávila e João Vicente, filho de Tarso, encerra o longa-metragem relembrando qual era a principal luta do perfilado. “Por um mundo melhor, mais humano, onde as pessoas se respeitassem mais… O Tarso era um socialista na alma dele. Adorava o poder, gostava de viver bem à beça. É uma contradição? Não é uma contradição? Não sei. Mas ele gostaria de um mundo mais justo. Ele sofreu muito com as mudanças, principalmente depois de 1964. Ele acreditava em um mundo diferente”, declara D’Ávila à João, que é um dos criadores do canal Porta dos Fundos que, assim como o Pasquim,usa o bom humor para tratar de assuntos importantes para sociedade.

Apesar de retratar alguém que morreu há quase duas décadas, A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro é de uma atualidade sem igual, pois refelete sobre o papel da mídia, a importância da liberdade de expressão, do respeito ao diferente e da transgressão dos ditos “bons costumes”. Um filme necessário e inteligente, assim como Tarso de Castro.

CartazA Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro
Roteiro e direção: Leo Garcia e Zeca Brito
Produção executiva: Letícia Friedrich e Mariana Mêmis Müller
Som direto: Fernando Basso
Desenho de som e mixagem: Tiago Bello
Direção de fotografia: Bruno Polidoro
Pesquisa: Alice Spitz e Sylvio Siffert
Montagem: Jardel Machado Hermes
Produção: Leo Garcia, Letícia Friedrich, Lourenço Sant’Anna, Mariana Mêmis Muller e Zeca Brito
Produção musical: Rita Zart
Trilha sonora original: Tiago Abrahão
Empresas produtoras: Anti Filmes, Boulevard Filmes, Coelho Voador, Epifania Filmes e Canal Brasil
Distribuição: Boulevard Filmes 

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