(Sem) memória

Adoniran, agora na Galeria do Rock, ainda procura um lar

Acervo do compositor símbolo do samba paulista está guardado em caixas, longe do público. Em 2018, deve ganhar documentário

Acervo Adoniran Barbosa

Adoniran na Praça da Sé, em 1978: compositor narrou as alegrias e tristezas da vida paulistana

São Paulo – Em meados dos anos 1980, quem andasse pelo centro velho de São Paulo poderia encontrar um espaço dedicado a Adoniran Barbosa. Ficava escondido, dentro de um antigo cofre no subsolo de um prédio que pertencia a um banco e hoje abriga uma secretaria estadual, na Praça Antônio Prado. Ali estavam fotos e objetos, inclusive os famosos trenzinhos que ele gostava de fabricar em casa. Quem tomava conta do espaço era Sérgio Rubinato, sobrinho do compositor. Agora, o acervo de Adoniran, nascido João Rubinato, voltou para o centro paulistano, mas ainda mais escondido do público, em caixas, na chamada Galeria do Rock, na Avenida São João.

Por onde andará
Joca e Mato Grosso
Aqueles dois amigos
Que não quis me acompanhar
Andarão jogados 
Na Avenida São João
Ou vendo o sol quadrado
Na detenção

(Abrigo de Vagabundos)

Segundo Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa, filha única de Adoniran, o acervo – com mais de mil itens – tem uma história cheia de altos e baixos, assim como a carreira do pai. Quem ajudou a preservar grande parte desse material foi Mathilde de Lutiis, dona Mathilde, companheira de Adoniran durante quatro décadas, até a morte dele, em novembro de 1982, aos 72 anos. “Meu próprio pai afirmava que ela era sua maior fã. Há relatos de amigos próximos e outros familiares que descrevem o quanto o sambista, de temperamento não tão fácil quanto se imagina, era paparicado pela mulher”, conta Maria Helena, filha do primeiro casamento do artista.

Zelosa, dona Mathilde guardava mesmo tudo, enquanto Adoniran, fiel ao estilo, dizia que ia “juntar barata”. Uma de suas mais conhecidas canções, Prova de Carinho, de 1960, foi inspirada em uma história real: uma aliança feita por ele para ela com uma corda “mi”. Mathilde morreu em junho de 1989, aos 66.

Com a corda mi
Do meu cavaquinho
Fiz uma aliança pra ela
Prova de carinho

A aliança faz parte do acervo, que também inclui brinquedos. “Adoniran costumava presentear aqueles por quem tinha um carinho especial ou algum tipo de gratidão com miniaturas de bicicletas feitas por ele. Entre os agraciados estão o cineasta Lima Barreto e o produtor musical, João Carlos Botezelli, o Pelão”, conta o cineasta Pedro Serrano. “O trenzinho funcionava e passava por todas as estações, que ficavam pintadas na parede da garagem de sua casa. Seu grande barato era chamar a criançada para ver o trem funcionando, mas logo depois já tratava de dispersar todos os curiosos antes de começarem a mexer em tudo”, acrescenta.

Autor de um curta-metragem lançado em 2015 (Dá Licença de Contar, com o ex-titã Paulo Miklos no papel de Adoniran Barbosa), Serrano deverá dirigir no ano que vem um documentário biográfico. O filme faz parte de um projeto amplo de resgate e divulgação da obra de Adoniran, a cargo de Maria Helena e seu filho Alfredo, neto do artista. Há também um portal em construção (www.adoniranbarbosa.com.br).

Dá Licença de Contar… (Editora 34) é o nome de biografia lançada em 2002 pelo jornalista e pesquisador Ayrton Mugnaini Jr. Outro bom título é Adoniran: uma biografia (Editora Globo, 2004), do também jornalista Celso de Campos Jr.

Segundo Maria Helena, é possível que nos próximos anos o acervo ganhe uma exposição provisória, enquanto não encontra um lar permanente. “Várias foram as tentativas de se construir o Museu Adoniran Barbosa, todas elas sempre frustradas pela falta de recursos, de patrocínios e da vontade política em preservar a história desse que é o maior nome do samba paulista”, lamenta. O acervo, agora em processo de transferência para uma sala na Galeria do Rock, repousa em caixas e pastas catalogadas pelo Departamento de Arquivologia da Universidade de São Paulo (USP). Chegou a ficar guardado em sítio e em um galpão industrial, ambos no interior paulista. Adoniran, ou João Rubinato, também é interiorano: nasceu em Valinhos, em 1910.

Além dos brinquedos, o acervo tem objetos, como as características gravatas-borboleta, documentos, fotografias, instrumentos, partituras, discos e roteiros, além de cartazes do filme O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, em que Adoniran é o personagem Mané Mole. Mas ele se celebrizou mesmo no rádio, apresentando o programa História das Malocas, escrito por Oswaldo Molles.

Além do cofre, com pouca divulgação, o acervo ficou um breve tempo no Teatro Sérgio Cardoso, na Bela Vista, bairro conhecido como “Bixiga”, e depois para o Museu da Imagem e do Som (MIS). “Parecia ter encontrado destino permanente. Afinal, nada mais pertinente que a história de um dos maiores multimídias do país habitasse aquele local”, diz a filha. “Porém, em 2009, o então diretor do museu declarou que já não havia mais espaço para o acervo de Adoniran ali”, recorda. 

A obra do autor de Trem das 11, Samba do Arnesto, Samba Italiano, Luz da Light, O Casamento do Moacir, Pafunça, Iracema, Bom dia, Tristeza (“parceria” com Vinícius de Moraes), Já Fui uma Brasa, Véspera de Natal, entre uma infinidade de pérolas, retrata as alegrias e tristezas da vida paulistana. A vida real, que agora nega um abrigo ao acervo do compositor, sensível às mazelas e às comédias humanas.

 

Quando o oficial de Justiça chegou
Lá na favela
E contra seu desejo
Entregou pra seu Narciso
Um aviso, uma ordem de despejo
Assinada, seu doutor
(…)
É uma ordem superior
Ô, ô, ô, ô, ô, meu senhor…
(Despejo na Favela)
 

 

 

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