Cultura

Ex-chefe do tráfico da Rocinha trocou as drogas pela literatura

Em 'A Número Um', Raquel de Oliveira revisita sua trajetória desde criança, quando foi vendida pela avó, até se tornar a primeira-dama do tráfico e depois chefe, na maior favela do país

Divulgação

Raquel de Oliveira: ‘Escrever esse romance foi muito difícil. Chegar até as 10 primeiras páginas foi sofrido’

Para Raquel de Oliveira, escrever foi uma questão de sobrevivência, uma rota de fuga da vida no crime e do vício nas drogas. Como não conseguia falar de si mesma a um conselheiro no grupo de ajuda contra a dependência química, ela recebeu dele um caderno com a sugestão de que escrevesse o que chama de RES, um relatório das emoções significativas. Assim, em 2005, começava a florescer a escritora que havia dentro de Raquel.

Uma história permeada de violência está no romance biográfico A Número Um (Casa da Palavra, 240 págs.), cuja reimpressão será lançada nesta quarta-feira (3) no Festival Literário de Poços de Caldas (Flipoços), em Minas Gerais. No livro está boa parte do que Raquel passou até se tornar escritora, avó e pedagoga.

Aos 6 anos, foi abandonada pelo pai e provou sua primeira droga, cola de sapateiro, para inibir a fome; Aos 9, foi vendida pela avó a um chefe do jogo do bicho. E aos 11 ganhou de presente o primeiro revólver. Anos mais tarde, chefiou o tráfico na favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, após a morte, na década de 1980, de seu grande amor, o traficante Ednaldo de Souza, conhecido como Naldo.

O talento de Raquel de Oliveira foi revelado na Festa Literária das UPPs, a Flupp, criada em 2012 pelos amigos Ecio Salles e Julio Ludemir como inciativa cultural para as Unidades de Polícia Pacificadora. Foi Ludemir quem ajudou a autora quando ela teve uma recaída durante o processo de criação de A Número Um.

“Um terapeuta me inscreveu [na Flupp] e cheguei assim aos ensinamentos literários, à amizade com o Júlio Ludemir e chegamos ao A Número Um. Escrever esse romance foi muito difícil. Chegar até as 10 primeiras páginas foi muito sofrido. Tive uma recaída, voltei ao tratamento e o Júlio me ajudou o tempo todo. Levei dois anos para concluir esse trabalho. Concluído, me senti superfeliz, realizada e completamente liberta das amarras do passado”, declara a autora.

Raquel considera a doença da dependência química o maior desafio da vida. O uso abusivo de drogas a levou à “falência total”, física, psicológica e financeira. Mas lembra que desde criança os livros eram a parte seu dia. “Achava-os nos lixos e tenho dois deles guardados até hoje. Aprendi a ler só nos jornais que cobriam o chão de barro do barraco, onde ficava trancada por dias. Eu tinha 6 anos. Essa memória afetiva sempre me acompanhou”, relata.

Quando receber de seu conselheiro a sugestão para escrever o RES, frequentava os grupos de autoajuda que usa muita literatura no tratamento. “Passei quatro meses trancada nas noites, com insônia e dor de cabeça. O remédio foi escrever. E assim nasceu minha poesia. E foi essa poesia que me levou aos grupos. Depois vieram os contos de senso comum, que os companheiros adoravam. Essa ação me mantinha limpa, comprometida e sã”, conta Raquel, que conseguiu completar os estudos depois de começar a escrever poesia.

O livro é a minha história e contá-la foi a forma de encontrar prazer, substituir o vício em drogas, me anestesiar de algum modo”, afirmou a autora à época do lançamento oficial deste seu romance biográfico, em 2015. Atualmente, além de integrar o grupo de ‘Fluppenseiros’, ela prepara a publicação de mais um romance e dois outros livros de poesia.

Na Flipoços, Raquel participa da mesa “Os desafios de fazer uma festa literária na favela” ao lado dos criadores da Flupp. O debate será realizado às 17h30 no Teatro da Urca (Praça Getúlio Vargas, s/n, no centro de Poços de Caldas), com mediação da jornalista Jéssica Balbino.

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