História

Em 21 episódios, websérie relembra o massacre de Eldorado dos Carajás

Em 'A Farsa: Ensaio sobre a Verdade', companhia Estudo de Cena mistura imagens de arquivo, entrevistas com sobreviventes e apresentações teatrais para resgatar chacina que completou 21 anos esta semana

Mercedes Zuliani/Divulgação

‘Vinte e um trabalhadores foram mortos em uma tentativa do estado calar a população que ocupa as ruas para lutar’

Em março de 1996, 1500 famílias que estavam acampadas às margens da Rodovia PA-275 decidiram ocupar as terras improdutivas da Fazenda Macaxeira e fazer uma marcha até Belém para reivindicar a reapropriação da fazenda e o assentamento das famílias. A marcha foi iniciada no dia 10 de abril. No dia 16, já estavam nas proximidades do município de Eldorado dos Carajás. Cansados e famintos, os lavradores decidiram bloquear a estrada para negociar com o governo do estado: queriam ônibus para seguir até Belém e alimentação. O major Oliveira, da Polícia Militar, garantiu que se desobstruíssem a estrada, o governo enviaria ônibus e alimentos. No dia 17 de abril, os sem-terra foram informados pela polícia que o governo não iria cumprir o acordo. Em protesto, a PA-150 foi ocupada e bloqueada no local conhecido como ‘Curva do S’. Na capital, o governador Almir Gabriel realizou uma reunião de emergência com o secretário de Segurança Pública, onde decidiram retirar os trabalhadores da rodovia a qualquer custo.”

É com este depoimento que começa a websérie A Farsa: Ensaio sobre a Verdade, que estreou esta semana, quando o massacre de Eldorado dos Carajás completou 21 anos. Produzida pela Companhia Estudo de Cena, a série de 21 episódios traz registros de apresentações e andanças do grupo, entrevistas com sobreviventes do massacre, ações em acampamentos do movimento de luta pela terra, entrevistas com jovens assentados e muitas memórias da chacina que deixou 21 mortos no sul do Pará. Os vídeos estão sendo lançados em ações públicas acompanhados de apresentações teatrais do grupo e também em um canal do YouTube, que já traz dois episódios on-line.

O grupo mistura imagens de arquivo, entrevistas, espetáculos teatrais e encenações para resgatar a história de quem esteve presente e até hoje sofre com as consequências do massacre de Eldorado dos Carajás. A companhia fez uma imersão, realizou uma série de apresentações em assentamentos e locais emblemáticos, registrou fatos e memórias importantes para apresentar a ótica de quem está diretamente relacionado a este que é um dos mais tristes acontecimentos ligados à luta pela terra no Brasil.

Segundo Diogo Noventa, integrante da companhia e diretor, roteirista e montador da série, o processo de produção da obra começou em abril de 2014, quando a Estudo de Cena foi para o Acampamento Pedagógico da Juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizado no local do massacre, ou seja, na “Curva do S”, na rodovia PA-150. “Ficamos sete dias acampados no local, participando das atividades do acampamento, dando oficinas de teatro e apresentando a peça A Farsa da Justiça na estrada bloqueada. Nessa viagem, fomos com uma pequena equipe de filmagem e iniciamos as gravações. Filmamos a apresentação da peça, entrevistas com sobreviventes, intervenções em Curionópolis, a mística no cemitério onde estão enterrados 17 dos 19 assassinados em 17 de abril de 1996”, afirma.

Lembrar é resistir

Diogo afirma que a passagem do grupo pelo sul do Pará fez com que a juventude do MST retomasse o projeto de um espetáculo sobre o tema. “Um grupo de teatro de militantes moradores de assentamentos da região montou a peça. Em junho de 2016, encontramos estes jovens no Encontro Internacional de Teatro Político, que ocorreu em Maricá (RJ). Nesse encontro, a importância de se fazer um filme sobre A Farsa ficou evidente. No segundo semestre de 2016, retomamos as filmagens, já com a ideia de fazer uma série ou um filme dividido por episódios. No começo de 2017, novamente uma pequena equipe de filmagem foi para Eldorado dos Carajás acompanhar as apresentações da versão de A Farsa da Justiça, realizada pelo grupo agora batizado de Banzeiros”, conta.

A partir do momento que a companhia foi contemplada em um edital de fomento ao audiovisual, eles começaram a etapa final de filmagem, com experimentos cinematográficos sobre temas referentes ao massacre e versões adaptadas de cenas da peça. “A ideia da série é que não tenha um gênero definido, é um ensaio que retoma a história do massacre e faz uma reflexão sobre memória, representação, arte e política”, afirma Diego.

A motivação para a produção da websérie foi a necessidade de fortalecer a memória popular através de uma experiência artística que desconstruísse o imaginário simbólico criado e fortalecido cotidianamente pela indústria cultural e midiática. “Vinte e um trabalhadores foram mortos em uma tentativa do Estado calar a população que ocupa as ruas para lutar contra o projeto capitalista brasileiro. Com todo respeito e sentimento profundo pelas vidas perdidas, o fato do massacre não calou ninguém. Pelo contrário, reativou ainda mais a luta pela terra e contra todos os outros monopólios. A websérie está neste contexto, de fazer coro a uma perspectiva de vida real, onde a ideologia do capital não ecoe na imaginação e subjetividade dos seres humanos. A arte é uma experiência na qual a imaginação pode ser coletivizada, e é disso que estamos falando: de memória, de imaginar, de não esquecer. O esquecimento da história faz parte do projeto de poder estabelecido no Brasil”, reforça o diretor da série.

Exatamente no dia que o massacre de Eldorado dos Carajás completava 20 anos, em 2016, a Câmara dos Deputados votava a favor do impeachment da presidenta Dilma Roussef, fatos que, para Diogo Noventa, não podem ser dissociados. “Em 17 de abril de 2016, data que marcou os 20 anos do massacre, foi transmitido ao vivo pela TV brasileira a votação do impeachment de Dilma Rousseff. Um espetáculo midiático em um domingo ensolarado onde homens, em sua maioria brancos e heterossexuais, louvaram a família, a propriedade e a tradição mais conservadora da política brasileira. Nessa data, estávamos prontos para iniciar mais uma temporada da peça A Farsa da Justiça. Cancelamos a apresentação do dia 17 e assistimos calados à farsa da justiça que estava sendo televisionada no horário do futebol. Não podemos julgar que foi à toa ou uma coincidência que essa votação aconteceu no Dia Internacional da Luta pela Terra. A bancada ruralista, a bancada da bala vociferou saudações para nomes de torturadores em um dia de luta, em um dia que nosso sangue foi derramado”, diz.

Falar do massacre é dizer que este projeto conservador elitista mata as pessoas, violenta nosso imaginário, tenta controlar o esquecimento. Falar do massacre é representar a vida, falar de quem ousa lutar, de quem não se cala frente ao latifúndio, frente ao lucro da classe patronal. A gente ama a vida, buscamos nas marchas, nas palavras, imagens e passeatas o seu sentido humano e solidário; o que não tem nenhuma ligação com esses homens que julgam poder determinar nosso destino. Falar do massacre através de uma experiência artística é contribuir para nossa reinvenção política contra o avanço acelerado do capital”, completa Diogo.

A websérie pode ser assistida no canal A Farsa: Ensaio sobre a Verdade, no YouTube. Acompanhe as datas dos lançamentos dos episódios pela página do Facebook da companhia Estudo de Cena.