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Claudia e Jecinaldo: história de amor entre dois povos

Alberto César Araújo “Os rituais nos ensinaram a não trair a nossa luta e a ensinar isso para os nossos filhos. Eles também passarão por isso, e assim continuará a […]

Alberto César Araújo

“Os rituais nos ensinaram a não trair a nossa luta e a ensinar isso para os nossos filhos. Eles também passarão por isso, e assim continuará a nossa vida. Como povos”

Claudia, índia ticuna, virou mulher aos 12 anos. Em sua cultura, não há meio-termo: ou é menina, ou é mulher. Encabulada, olha para o lado, busca ajuda e menciona a “primeira menstruação”. Fala em português com alguma dificuldade. Com pausas. Mas com ritmo. Claudia passou pelo ritual da Menina-Moça com orgulho. E dor. Foi obrigada a ficar de pé numa rede durante quatro dias. Durante a festa devia apenas ouvir as conselheiras, as anciãs da aldeia – no oeste do Amazonas. Até hoje se lembra das palavras de sabedoria. A partir daquele momento, deixaria de ser a menina que se banhava com inocência nos igarapés. Teria de agüentar privações e passar a resolver os próprios problemas, e assim seria durante a vida. Aos 28 anos, casada e com dois filhos, ela conta que não cabe à mulher escolher o marido. Claudia tem um item essencial na composição da beleza de uma ticuna: pernas grossas. “Homem ticuna gosta de mulher de pernas grossas. Se não tem, não serve. E homem que não sabe fazer canoa também não serve.” Mais: tem de saber fazer casa e ter roça, para ousar pedir a mão de uma ticuna concorrida, como Claudia. Não que ela tenha algo contra o casamento entre dois jovens desconhecidos, de aldeias distantes.

Lembra-se da história de uma amiga que se casou dessa forma. Inicialmente não gostou: prometeu a si mesma que não ia dormir com ele. “Foi assim durante seis meses”, relata a ticuna. E pergunta: “Vocês, homens, agüentariam dormir seis meses ao lado de uma mulher, sem fazer nada?” Ela mesma responde: “Não agüentariam. As mulheres também não agüentariam.” Por conta desse esforço, admira o marido da amiga. “Teve paciência. Gostava dela. Numa noite, após seis meses, ele a conquistou. Hoje são muito felizes, têm seis filhos.”

Mas um dia chegou a sua vez: o pai escolhera o marido. Um desconhecido. Com o qual teria de ficar toda a vida – e nem pensar no contrário, aprendera desde o ritual da Menina-Moça. “Puxa, mas aí esse ticuna vai me fazer um monte de filhos, como vai ser?”, raciocinou. Consultou a mãe e conseguiu uma aliada.

– Foge, minha filha, foge!

– Se eu fizer isso, não vou ser mais pura. Uma ticuna não foge da casa dos pais.

– Foge enquanto é tempo.

Claudia fugiu.

Jecinaldo
O ritual de passagem dos meninos saterés-maués igualmente prevê a dor. Jecinaldo tinha 12 anos. Em uma luva de palha feita pelos tios maternos estavam cuidadosamente colocadas dezenas de tucandeiras, formigas grandes com uma ferroada muito dolorida. Antes elas tinham passado a manhã numa bacia com tintura de folha de cajueiro – para ficar anestesiadas. Em seguida, foram postas com a cabeça para fora da luva e o ferrão para dentro. Jecinaldo enfiou a mão na luva e, após 12 horas de suplício, deixou a infância. Durante o ritual, os anciões ensinam tudo sobre seu povo – os Saterés-Maués, no leste do Amazonas, inventores da cultura do guaraná. Um povo cioso de suas tradições, mesmo após três séculos de contato com os brancos. “Lutar pela nossa identidade, pelo nosso território, isso eles pedem na hora que a gente está fazendo o ritual. Porque está doendo. O ancião está falando e aquilo está ficando gravado para sempre aqui (aponta para a cabeça). E, se eu errar, estou traindo tudo o que fiz.” A nova fase implica mais responsabilidade, maior compromisso.

Jecinaldo é mais sisudo que Claudia. Difícil imaginá-lo falando com humor da adolescência que não teve. Aos 30 anos, liderança máxima das organizações indígenas da Amazônia, ele conta que o momento do ritual lhe deu muita sustentação para o mundo dos que os Saterés-Maués chamam de civilizados: “Para não me envolver com drogas, com outros tipos de vício, que tem muito nas grandes cidades. E também para ser muito responsável, respeitar as pessoas, lutar pelo que eles disseram que é mais sagrado, que é a terra, que é o nosso território”. Jecinaldo atua no movimento de defesa dos direitos indígenas desde os 14 anos. Não era mais criança, mas um guerreiro.

Jecinaldo e Claudia
As terras ticunas ficam do outro lado do Amazonas, no Alto Solimões. Claudia Araújo Mendes – a Claudia ticuna – estava em Manaus quando conheceu Jecinaldo Barbosa Cabral – o Jecinaldo sateré-maué. “Ela é uma guerreira que, através da música, transmite a luta indígena”, diz Jecinaldo. “E eu lutando nas organizações indígenas, nos embates com governos, fazendeiros, madeireiros, e aí num dos eventos em Manaus a gente se encontrou.”

Claudia canta – e bem. Ano passado, durante a abertura do 2º Encontro Nacional dos Povos das Florestas, em Brasília, ela cantou na presença de ministros e do presidente da República, acompanhada dos músicos Aguinilson e Tobias Ticuna. “Não vamos deixar derrubarem a floresta”, anunciou. “Custe o que custar.” Naquele dia somente cinco pessoas falaram: um secretário do Ministério do Meio Ambiente, para a leitura de uma poesia sobre o seringueiro Chico Mendes, a ministra Marina Silva e Lula, pelo lado dos “civilizados”; além de Claudia (entre uma e outra cantoria) e Jecinaldo (numa leitura emocionada de discurso). “Por mais que a gente seja diferente como povos, temos objetivos comuns”, explica o líder. “Em cima disso, acho que nasceu a nossa paixão. A partir dessa identidade, desse mesmo tipo de luta, a gente se encontrou e está junto até hoje.”

Claudia abraçou a causa da juventude e, com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), leva jovens para o exterior, a representar a cultura indígena. Esteve com a rainha da Espanha e na Semana do Brasil na França. É uma artista e uma ticuna: para falar de si, ela passa a mão pelo rosto, pelas pinturas, para exaltar seu clã. É pela cultura que faz política. Jecinaldo há vários anos é coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). A entidade reúne 75 organizações e 165 povos indígenas. Durante o evento com Lula, foi ele quem cobrou do presidente a defesa da floresta e de quem mora nela, contra os grileiros, garimpeiros e agropecuaristas. Ele domina o português e o discurso. É pela política que faz história.

O casamento resultou em dois filhos: a menina Tichwayna, de 9 anos, e o menino Tichwa, de 5. Tichwayna e Tichwa falam ao mesmo tempo ticuna, sateré-maué e português. “Nossos filhos já aprendem mais do que eu, que falo sateré-maué e português”, diz o pai. “Os rituais nos ensinaram a não trair a nossa luta e a ensinar isso para os nossos filhos. Eles também passarão por isso, e assim continuará a nossa vida. Como povos.”

Claudia e Jecinaldo não representam a união de dois “índios”, como costuma reduzir a cultura dos brancos. E, sim, duas nações. Dois brasileiros de nações diferentes decidiram manter suas tradições: a Ticuna e a Sateré-Maué. Ambas complementares, com suas riquezas específicas.

Assim, quando Tichwa estiver entre 11 e 14 anos (não há um período exatamente definido), seguirá com Jecinaldo para o ritual dos Saterés-Maués. O das formigas. Provará sua coragem e será um homem.

Tichwayna não está longe do momento de passagem: assim que tiver a primeira menstruação, Claudia a levará para o ritual da Menina-Moça. De pé, numa rede. Será uma mulher.