Ensino ameaçado

Governo Bolsonaro ameaça fechar escolas do MST que atendem 200 mil alunos

Nos 35 anos de existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a educação é esteio da organização e qualifica para produção que se tornou uma das principais em alimentos orgânicos no mundo

Olga Leiria/RBA

Antes um barracão, a escola estadual José Martí, reerguida em Jardim Alegre, recebe mais de 600 alunos da região

São Paulo – Há 35 anos, em 21 de janeiro de 1984, era oficialmente fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), durante seu primeiro encontro nacional. Quem não conhece de perto o trabalho do MST e se informa pela imprensa comercial ou pelas redes sociais do presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores, pode até considerá-lo uma ameaça ao país. A realidade, no entanto, é diferente.

O MST tem hoje um foco de atuação na defesa da agroecologia, do manejo sustentável da terra e no consumo consciente como parte da segurança alimentar. Abrange a instalação de 96 agroindústrias, 1.900 associações de trabalhadores rurais e mais de 350 mil famílias assentadas, produzindo toneladas de alimentos provenientes de localidades onde antes só havia terra improdutiva.

Essa comida, quase toda, é produzida sem veneno, os agrotóxicos que representam ameaças à saúde da população e enriquecem a indústria farmacêutica e os chamados “defensivos agrícolas”. Na base desse conhecimento que passa de acampamento em acampamento, de assentamento em assentamento, está a educação, pilar na organização e no fortalecimento do MST.

 “A vida no assentamento garante às famílias direitos sociais que não são garantidos a todo o povo brasileiro, como casa, escola e comida”, afirma o movimento em seu site.

A necessidade de fazer com que os filhos dos assentados e acampados pudessem ter acesso à educação de qualidade levou à criação de cerca de 1.500 escolas para jovens de 7 a 14 anos – 1.100 delas já reconhecidas pelos conselhos estaduais de educação e cultura. Elas abrigam em torno de 200 mil alunos e 4 mil professores, além dos 250 educadores que trabalham nas Cirandas Infantis – educação de crianças até seis anos ou na faixa da alfabetização. O MST mantém ainda 320 cursos divididos em 40 instituições de nível fundamental, médio, técnico, superior e educação de jovens e adultos (EJA).

“Todo o esforço do MST em levar educação de qualidade aos acampados e assentados rendeu bons frutos ao longo dos anos”, afirma a organização, em nota. “Segundo o Índice de Desenvolvimento na Educação Básica (IDEB), duas escolas do MST no Piauí obtiveram em 2018 os maiores índices na educação básica.”

Para Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as escolas do MST não só são importantes porque atendem uma quantidade imensa de estudantes, como também atingem uma população de crianças, adolescentes, jovens e adultos em situação de vulnerabilidade, que muitas vezes o poder público não alcança e até criminaliza.

“Além disso, o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas do MST é um trabalho de qualidade ímpar: há preocupação sensível com a inclusão, com as diversidades e com uma pedagogia de qualidade”, avalia.

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Governo ataca e ameaça

Apesar da qualidade reconhecida, as escolas do MST correm risco. O secretário especial de Assuntos Fundiários do governo de Jair Bolsonaro, Luiz Antônio Nabhan Garcia, afirmou que vai trabalhar para fechar as escolas chamadas por ele de “fabriquinhas de ditadores”.

Contraditoriamente à sua preocupação com posturas ditatoriais, defendeu o direito de o fazendeiro reagir a bala quando tem sua propriedade “invadida”. O presidente eleito também já disse que não tem diálogo com o movimento e ameaçou colocar fim aos processos de reforma agrária – medida entre as tantas das quais teve de recuar.

“Não dá para o Brasil admitir em pleno século 21 fabriquinhas de ditadores. Não dá para admitir escolas de marxistas, de leninistas, de bolivarianos, que ensinam crianças a invadir e cometer crimes. Vamos fechar as escolas e punir os responsáveis pela doutrinação. Aliás, isso tem de ser qualificado como crime. Crime de lesa pátria”, disse Nabhan que é presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), representante dos latifundiários brasileiros. 

O movimento afirma que não “doutrina” crianças e que todas as escolas de assentamentos são públicas e cumprem as diretrizes aprovadas pelo Ministério da Educação.

“A educação do MST é um trabalho estrutural para uma transformação das zonas rurais do país em busca da justiça social e ambiental. Isso certamente é alvo dos grandes interesses ruralistas”, avalia Andressa. 

Essa transformação foi vivida pela jovem Débora Makoski Francelino, que dá aulas numa das escolas do MST, no assentamento Dom Tomás Balduíno, na região de Quedas do Iguaçu, no Rio Grande do Sul. Durante a passagem da Caravana Lula pelo Brasil relatou à reportagem da RBA seu orgulho por fazer parte do movimento. “É algo que a gente está conquistando para nós, para o Brasil, para estar melhorando tanto na alimentação, quanto na educação”, disse a professora, defensora da agroecologia e do manejo sustentável da terra.

“A educação tem impacto positivo imenso na vida daquelas crianças, que valorizam a terra, a sustentabilidade e a residência no campo, diminuindo inclusive os êxodos rurais.” (Andressa Pellanda, da da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Débora lembra do tempo em que também tinha preconceito em relação ao MST, até seu pai decidir abandonar a vida de “viver para trabalhar e não trabalhar para viver, sem tempo nem para a família” e decidir seguir ao lado do movimento. “Eu tinha 16 anos e não queria vir. Todo mundo falava mal dos sem-terra e eu não sabia o que era. Tinha esse preconceito que têm os que não têm tempo ou dedicação para pesquisar o que é de fato.”

Quando chegou, viu uma realidade toda diferente. “Aqui não existe uma pessoa só para comandar o movimento, todos nós comandamos.”

Educação que semeia futuro

Para Andressa Pellanda, o trabalho de educação no campo, nas escolas do MST, é realizado por educadores que compreendem profundamente as realidades locais e têm senso de transformação social.

“Isso gera um impacto positivo imenso na educação daquelas crianças, que valorizam a terra, a sustentabilidade e a residência no campo, diminuindo inclusive os êxodos rurais.”

Pós-graduada em Ciência Política e mestranda em Relações Internacionais, Andressa considera que essas são perspectivas absolutamente alinhadas com o que tem de mais avançado nos debates globais para o desenvolvimento sustentável. “Os estudantes das escolas do MST aprendem não só os conteúdos curriculares, como também senso de comunidade, do trabalho com a terra, dos direitos humanos.”

O Viveiro de Mudas Silvino Gouveia é uma mostra disso. Localizado no assentamento Liberdade, em Periquito, Vale do Rio Doce (MG) proporciona aos agricultores um aprendizado por meio do qual o MST pretende reflorestar assentamentos da reforma agrária: o projeto Semeando Agroflorestas.

A proposta, como explicou o jovem assentado Davy Pereira Paixão, é fazer um trabalho de recuperação das áreas que estão muito degradadas. “Seja em função da atividade anterior, do fazendeiro que explorou muito, seja pelo pastoreio e pelo mau uso da terra.” A técnica alia o plantio de árvores à produção de alimentos. “Pelas histórias contadas pelos mais velhos, a gente se sente muito triste. Estão acabando com tudo e a monocultura aumentando”, lamenta.

André Pereira da Paixão trabalha como coletor de sementes no viveiro de mudas Silvino Gouveia. Depois leva mudas para outros assentamentos. Técnico em administração de cooperativas, estudou na escola do MST. “Desde sempre gostei de estudar a questão da agroecologia. Pra gente que conhece outras regiões, é triste voltar aqui e ver esses morros todos pelados, essa degradação. O trabalho do viveiro rejuvenesce a gente. Quando chegamos nos assentamentos somos recebidos com muito carinho e as pessoas entendem a importância que tem isso.”

São quatro viveiros no estado e mais de 600 famílias assentadas e mais de 300 acampadas. “Cada assentamento tem um núcleo que contribui com o trabalho no viveiro, a tarefa de coleta de sementes, e estuda essa questão do SAF, como fazer para recuperar as áreas, as nascentes. Tem muita gente envolvida.”

 

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