'Lei geral'

‘Enquanto houver capitalismo, Marx continuará atual’, diz professora

Foi o filósofo alemão quem primeiro captou que a crise no sistema é regra e eclode de tempos em tempos, quando os limites da acumulação são ultrapassados e as contradições ficam expostas

f2b1610/Flickr

Capitalismo viveu a sua fase áurea de desenvolvimento quando esteve atormentado pela sombra do socialismo

São Paulo – Em meio às celebrações do bicentenário do filósofo alemão Karl Marx, também surgem críticas quantos à validade das suas formulações para a compreensão atual do mundo. Com a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da União Soviética, muitos são taxativos em dizer que a experiência do chamado “socialismo real” teria fracassado.

Ainda assim, a cada nova crise do capitalismo, que se sucedem com cada vez mais frequência e intensidade, com turbulências nos mercados mundiais que conduzem milhões à pobreza, as ideias do pai do socialismo científico voltam à tona no debate político e econômico. Como nenhum outro, Marx desvendou os mecanismos da exploração capitalista, expondo as contradições desse sistema baseado na exploração – extração de mais-valia – da massa de trabalhadores por uma minoria detentora dos meios de produção. 

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Marx, o homem, o mito, o revolucionário, foi também poeta, romântico, apaixonado.

“Enquanto existir capitalismo, Marx seguirá atual”, diz a professora do Departamento de Economia e da pós-graduação Universidade de São Paulo (USP) Leda Paulani. Segundo ela, a “arquitetônica” do sistema capitalista, que teve suas bases lançadas com a revolução industrial nos séculos 18 e 19, dissecada pelos trabalhados do autor de O Capital – nessa e em outras obras – ainda que com algumas variações, permanecem atuais.

“A arquitetônica da sociedade moderna baseada na economia de mercado permanece. Ninguém supera o Marx, no desenho e na compreensão que ele teve em como essa máquina funciona. De um ponto de vista geral, com um ou outro desmentido, diria que ele acertou magistralmente, na formação orgânica do capitalismo e em muitas previsões.”

Segundo a teoria marxista, as crises enfrentadas pelo capitalismo não são de ordem acidental, externa, ou devido a qualquer conjuntura específica, mas, sim, é parte do seu mecanismo de funcionamento ou, ainda, causadas pelas suas próprias contradições internas. 

“Quando ele trata da lei geral da acumulação capitalista, diz que o sistema vai formar cada vez mais riqueza, mas, em paralelo, vai criar uma pobreza cada vez maior. Ou seja, a criação de riqueza sempre teria o outro polo. Existe uma contradição fundante no capitalismo, a riqueza cresce a partir da apropriação do trabalho não pago – a mais-valia – além de outras questões, como a circulação de capitais, formação de ativos, etc.”, explica Leda.

Outro momento em que Marx também esteve desacreditado foi durante a chamada “era de ouro do capitalismo” – conhecido também como “os 30 anos gloriosos” – período marcado pela prosperidade econômica no mundo ocidental nas décadas que se seguiram ao final da Segunda Guerra Mundial. Mas, mesmo quando o capitalismo se deu melhor, isso só foi possível pela contribuição indireta do mais importante teórico da luta de classes.

O “milagre” das altas taxas de crescimento registrado nesse período – que vai de 1945 a finais dos anos 1960 – se apoiava em uma economia fortemente regulada pelos Estados nacionais, com pesados investimentos para reconstruir a infraestrutura europeia devastada pela guerra, também se apoiava na criação do chamado Estado de bem-estar social, que previa o acesso da população à serviços de educação e saúde gratuitos, sistemas robustos de previdência pública e uma série de direitos trabalhistas, que avançaram no mundo todo.

Foi a forma encontrada para pacificar as sociedades de modo a evitar mais um novo conflito de escala global. Era também um mecanismo econômico escolhido para redistribuir aos trabalhadores parte do capital acumulado pelas empresas. Mas principalmente, foi a fórmula encontrada pelos países capitalistas para evitar uma convulsão social que pudesse levar a uma revolução socialista, já que nesse momento a União Soviética também havia saído vitoriosa da Segunda Guerra e controlava quase a metade do continente europeu.

Por tudo isso, Leda Paulani, assim como outros economistas, diz que esse período de bonança do capitalismo foi exceção, e não a regra, já que as crises sistêmicas ocorriam pelo menos desde o final do século 19, passando pela maior delas em 1929 – que começou com a quebra da Bolsa de Nova York e se alastrou pelo mundo. Após os “30 anos gloriosos”, elas retornaram com toda a força. 

Na década de 1970, as duas crises do petróleo (1973 e 1979); Nos anos 1980,  a crise da dívida externa marcou a “década perdida” para o países periféricos do capitalismo, como o Brasil. Além do baixo crescimento, ao longo de todo o período, os anos 1990 terminam com a eclosão da crise financeira dos Tigres Asiáticos (1997) e a crise russa (1998), que impactaram o mundo todo, já muito mais globalizado nesse momento. 

No ano 2000, estoura a chamada “bolha da internet”, que novamente volta a derrubar os mercados pelo mundo, com impactos no setor produtivo e no emprego, que mal haviam se recuperado e sofrem novo abalo com as incertezas econômicas relacionadas aos ataques de 11 de setembro de 2001 e à “guerra ao terror” que se seguiu. Por fim, chegamos à crise das hipotecas nos Estados Unidos (2008), que inaugura a última onda de crise, que depois se alastra pela Europa, e mais tardiamente alcança a periferia do sistema capitalista, em países como Brasil, Argentina e Venezuela, que ainda sentem os seus efeitos até o presente momento.

“De fato, os 30 anos gloriosos foram um período excepcional da história capitalista. Ela era assim (de crise em crise), desde quando Marx escreveu (meados do século 19), até a Segunda Guerra. Depois, de 1970 em diante, é marcada por um cenário de crescimento muito baixo, quando não um quadro recessivo, coalhado de crises sucessivas. De 1980 para cá, não passam cinco ou seis anos sem que se tenha uma grande crise, seja monetária, de imóveis, nas bolsas. São crises com repercussões que vão sempre muito além da sua origem”, analisa a professora da USP. 

Ela cita ainda outro filósofo marxista Robert Kurs, que escreveu o livro O Colapso da Modernização, que metaforicamente afirma que o capitalismo é uma “besta-fera”, que quando devidamente acorrentado (como nos anos gloriosos), pode até funcionar adequadamente. Mas, há pelo menos 40 anos, a fera se libertou das correntes. E uma nova crise deve estar por vir…